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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 348

d'oliveira, 31.03.20

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Diário das semanas da peste

Jornada décima sexta-feira

engenhoso mas trapalhão

mcr, 31 de março

 

“Lá ideias tens, mas a execução é abaixo de cão”, dizia-me um velho amigo a quem, volta e meia, recorria para salvar uma estante infamemente pintada por mim. E é verdade, uma verdade dolorosa ou como afirmava Danton, “a verdade, a áspera verdade”.

Quando cheguei ao liceu, tudo me pareceu senão fácil pelo menos razoável. Tudo excepto o desenho, fosse ele geométrico, à vista ou livre. No primeiro, que requeria tira-ljnhas e mais uma panóplia de instrumentos sinistros e tinta da China, o meu trabalho acabava num série confusa de borrões miseráveis. Os dedos sujos de tinta, algum pingo na roupa, o desenho geométrico negava-se-me como uma virgem ofendida.

O desenho à vista só o era se a vista fosse completamente zanaga. Um cego não me ficaria atrás se é que não me ultrapassaria em rigor.

O desenho livre, era, com favor, medíocre. O pobre professor devia olhar-me como se olha uma praga do Egipto, uma nuvem de gafanhotos, um pequeno terramoto.

Ainda por cima eu era, nas restantes disciplinas, um bom aluno, eventualmente o melhor. As notas de desenho até nem eram tão horríveis porquanto o pequeno conselho de professores terá entendido que eu não era cábula mas inepto, doente, sei lá o quê.

O Dr. Ilídio Sardoeira, que me dava aulas de Desenho e Ciências Naturais, confidenciou ao meu pai que já consideraria um forte progresso o facto de eu não sujar o chão à minha volta num raio de um metro. Ilídio Sardoeira era, além de excelente professor e homem bom, militante comunista pelo que no fim do ano escolar foi preso e nunca mais o vimos. Só o reencontrei trinta anos depois e pude dizer-lhe de viva voz quanto as suas qualidades de pedagogo me tinham impressionado. O excelente senhor ficou feliz, claro que não se lembrava de mim, tantos eram os anos passados, até que lhe recordei que me dera 8 a desenho e 16 a Ciências Naturais. Fez-se um clique e na memória do ancião lá reapareci eu aureolado de borrões de tinta da China, de gouache num impressionante exemplo de arte selvagem. “Ai tu és esse?” disse-me enquanto me abraçava. Era eu, claro, comovido mesmo se o reconhecimento do velho mestre assentasse numa espécie de Alcácer-Quibir artístico.

Vem tudo isto à baila porque o último Expresso espeta umas farpas nos comentaristas televisivos que, agora em casa, se mostram com uma estante atrás. Eu até compreendo o facto. Eles devem estar nos respectivos escritórios caseiros, se os têm, e por isso é natural a estante. Todavia, o Expresso que sabe bem mais do que eu, deixa no ar uma suspeita de que há naquilo muita pose, muito amor aos livros, sejam eles quais forem. Com a malícia que caracteriza a secção “Gente”, o Expresso deixava no ar uma pouco inocente acusação aos cavalheiros em causa.

Fiquei um pouco atrapalhado pois quando não tenho uma vinheta apropriada, deixo uma fotografia de alguma das 15 estantes que me forram um T-4 +1. Isto para não falar da cave. São livros a mais, isto já nem é amor pela leitura, eu devia era ser interditado, proibindo-se a livreiros editores, feirantes e alfarrabistas que me vendessem sequer um papel escrito quanto mais uma revista ou um livro.

Ainda por cima, e aqui está a prova de que lá engenhoso sou: Já não há estante que não tenha espaços horizontais aproveitados onde jazem mais livros, normalmente os mais compridos. Para tal, além de substituir praticamente todas as grossas prateleiras de madeira (espessura de 2,5mm) por outras de vidro com apenas 6 mm. Os meus críticos aplaudem a ideia mas apontam o ligeiro problema de nem sempre elas estarem perfeitamente horizontais pois sou eu que munido de um leal mas inocente Black & Dekker faço as furações na estante...

Também já aconteceu e por várias vezes que encomendo vidros com medidas erradas ou por demasiado grandes ou porque não tive em linha de conta outros pormenores como , no caso das estantes fechadas as fechaduras. O excelente e prestável vidraceiro a que recorro já me pergunta se eu tenho a certeza eaté levou a desfaçatez a um ponto terrível, pedindo-me que lhe levasse a prateleira a substituir!...

Ora bem, quando li aquela frechada aos comentadores estabelecidos na praça da televisão e arredores pensei que poderia fazer com o I phone fotografias das escassas paredes onde não se acoitam as estantes. Vai daí apontei o aparelho a dois ou três locais e pimba, saia fotografia! O resultado, pouco brilhante, deveria depois ser passado para um computador, no caso este. Em princípio, eu iria ao ícone das fotografias, teclaria, apareciam as ditas cujas selecionaria a fotografia, teclaria a que me interessasse carregava num símbolo que tem uma set e escolheria “mensagem” ou e-mail . Nova carregadela e já está!

Está o tanas e o badanas! Aparece a mensagem ”o envio falhou”

Isto que acabo de escrever, sucedeu ontem e hoje por duas vezes. E não é que à terceira o raio da fotografia cá apareceu? Não, isto não é só trapalhice minha, devo é estar endemoninhado. Às tantas foi uma praga da CG que acha que esta casa parece um pandemónio de livros, discos (nem me atrevo a dizer quantos) dvd de cinema e máscaras africanas para já não falar dos quadros.

Um vizinho inquietou-se e deixou cair a seguinte pérola, grande sacana, “um dia destes você está no sexto andar ou mesmo no quinto!” (eu vivo no sétimo...) E de pouco serviu o facto de eu lhe explicar que isto aqui, no Foco, é construção de luxo, à prova de tudo. E de, ironicamente, lhe lembrar que quando foi preciso fazer obras profundas na fachada, fui eu quem foi unanimemente escolhido para representar os condóminos frente aos responsáveis pelas obras, à equipa de fiscalização, a um professor doutor arquitecto que nos custou uma fortuna e à própria administração. E a verdade é que não reduzi o orçamento previsto mas ganhei muita obra a mais, quase 6% do orçamento inicial. Bem me lixei pois fui eleito membro da comissão de acompanhamento da administração (ou seja apanho com as reclamações das minhas simpáticas condóminas ainda mais velhas e acabadas do que eu) cargo de que ao fim de vinte anos de pastor me libertei com o argumento da idade avançada.

E pronto, em vez de estantes, ai vai uma vinheta. Antes que alguns dos poucos mas persistentes curiosos me salte ao caminho aqui vai a identificação, de cima para baixo e da esquerda para a direita. Domingos Pinho, mascará songhie (Congo) Ana Maria (uma das primeiras compras que fiz), Diogo de Macedo (aguarela sobre papel para o álbum de minha avó Dora Heinzelmann), Dario Alves (acrílico sobre madeira). José Rodrigues (desenhado pouco antes da sua morte), António Modesto (aguarela), bronze de Benin, António Modesto (acrílico). Ainda do lado esquerdo, 3 máscaras Buru (Gabão), Ogoni (Nigéria) e Dogon (Mali) . Os tacos do bilhar (livre!, se faz favor) não contam. Nem o maravilhoso canapé, velharia recuperada que serve para o Nuno Maria subir e descer duzentas vezes ao dia.

Leitoras e leitores, isto está para durar. Cautela e caldos de galinha, aguentem que é serviço. Não se deixem vencer por essa bicheza maligna e, muito menos, pelo stress do confinamento! Se tudo correr bem, lá para fins de Maio poder-se-á, leitorinhas gentis e “velidas,” “bailar so aquestas avelaneiras frolidas” como bem cantou Airas Nunes. Ora aqui está uma bela sugestão de leitura: poesia medieval portuguesa ou galaico portuguesa. Há muito por onde escolher, basta ir ao Wook.

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