Estes dias que passam 357
À maneira de Swift
(rescaldo 3)
(pensei algum tempo antes de publicar esta crónica. Para quem o ler com alguma atenção sobram amargura e sarcasmo. Escrevi-o sem alegria ou entusiasmo. Há demasiada dor por aí, à solta. E há, certamente muitos culpados fugidos da luz pública, escondidos em falácias e desculpas, em enredos e enganos. Depois, há, também, “um fogo que arde sem se ver”, o lume da cólera, da impotência raivosa e da indignação. É para quem assim se sente que escrevo. Os outros podem passar de largo.)
Desta feita, deu-me para recordar Jonathan Swift, o autor genial das “Viagens de Gulliver” e de vários extraordinários panfletos que o tornaram conhecido, admirado ou detestado em Inglaterra e na Irlanda. Destes, para o caso, destacaria a “Modesta proposta para evitar que os filhos dos pobres da Irlanda sejam uma carga para os seus pai, para o país e para que se convertam em algo de útil para o povo”. Em poucas palavras, Swift propõe, apoiado em cálculos matemáticos, que a fome na Irlanda e a pobreza em geral poderiam ser combatidas engordando as crianças filhas de pobres para serem caçadas. Diminuiria assim o número de habitantes (demasiados face aos recursos da ilha) e a saúde publica melhoraria graças ao suplemento de proteínas animais. Isto, se bem recordo, sem falar nos benefícios obtidos com a permissão para caçar.
Quase se poderá fazer proposta semelhante para todo o interior português, quiçá ressalvando as capitais de distrito.
É verdade que a envelhecida população não forneceria uma carne de qualidade mas também não era para isso que seria usada. A ideia é mais simples: Numa época em que pesam por todo o lado as ameaças do Daech e de outros grupos de malfeitores, seria possível constituir no, apesar de tudo, vasto hinterland lusitano uma extensa zona de guerra de treino anti guerrilhas onde se exercitariam tropas especiais (nacionais e estrangeiras –outra forma de turismo ainda não explorada). Para o efeito, distribuir-se-iam, mediante um modesto pagamento, aos habitantes de ambos os sexos (em sinal de respeito pela paridade e pela democracia) armas antiquadas que o nosso Exército deve possuir em quantidade apreciável. Resolvia-se, neste particular aspecto, outro duplo problema nacional: despachava-se armamento obsoleto e reduzir-se-ia o custo das Forças Armadas.
As forças militares portuguesas nada pagariam mas essa perda de rendimento seria compensada pelo que se pediria a estrangeiros e/ou a milícias particulares.
Sendo certo que, só em pensões, a população do interior custa um dinheirão, bem se pode ver o valor dos ganhos obtidos pelo abate de criaturas praticamente imprestáveis. A essa poupança de dinheiros públicos haverá que somar outra igualmente importante. Centenas de serviços locais ou regionais poderiam ser extintos ou fortemente reduzidos dado o desaparecimento de utentes, mesmo se, num primeiro tempo, pudesse haver um incremento do desemprego dos funcionários respectivos. De todo o modo, poder-se-á estudar, com o auxílio da Caixa Geral de Depósitos o custo real de tal medida. Bastaria pedir à grave instituição, patrioticamente nacional e nossa, o estudo que levou a cabo para fechar a agência de Almeida que, recorde-se, até é sede de Concelho.
Relembra-se ainda que certos problemas estruturais como a falta de médicos ou enfermeiros em todo o Serviço Nacional de Saúde, seria colmatada com a transferência dos que exercem nessas “terras do demo”, finalmente libertadas de doentes.
Aqui chegados, como diria aquele senhor que finge de Marcelo do Norte na SIC, poderá surgir a pergunta: Que fazer (como diria outro senhor já falecido e bolchevique) quando já não houver habitantes nessas extensas regiões de fogos e desesperança?
Também aqui a resposta é simples. Desaparecida que está a população, a floresta deixa de ter dono. Deixando de ter dono, não necessita de Cadastro, operação demorada, custosa e dificílima. Poderá pois ser nacionalizada até se atingir os rácios europeus (40%) deixando a restante para outros usos: campos de golf, quintas para estrangeiros amadores da doçura dos nossos costumes e clima, libertação de terrenos para plantação de carvalhos, castanheiros e outras espécies nobres que o pinheiro e eucalipto afugentaram, pastos para bisontes (boa carne e boa pele) importados da Polónia ou dos Estados Unidos, consoante o preço, criação de reservas de caça tropical (importando espécies cinegéticas de África, mormente lusófona sem exceptuar a Guiné Equatorial (neste caso poder-se-ia mesmo alugar a esse curioso país algumas extensões de terreno para que as suas autoridades pudessem construir campos de detenção provisoriamente definitivos para oposicionistas políticos, permitindo assim à nova e lusófona nação substituir a pena de morte local por humaníssimas prisões perpétuas).
Dir-me-ão que nem todo o interior é igualmente defeituoso e que forçoso será criar “corredores” mais ou menos largos para poupar terras boas e ligações a Espanha e ao mundo. Que, portanto, esta evidência potenciaria a criação de um arquipélago de enclaves no meio da waste land (se permitem que cite Elliott). Ora a nossa (lusitana e imperial) experiência em enclaves está indelevelmente manchada pela história do fim do meio século XX, quando se perderam Dadrá e Nagar-Aveli (territórios respectivamente comprado pelo Estado Português e recebido como indemnização por ter sido afundado um navio português). A União Indiana invadiu ou mandou invadir essas duas inúteis e isoladas regiões começando assim o fim do Império do Oriente.
Não creio que com as zonas libertadas de população se corra idêntico risco. A Espanha já tem com que se entreter com os seus distritos fronteiriços mesmo se aquilo já não é como “Las Hurdes” do genial Buñuel. De tierra sin pan eis que estão convertidas em reserva natural visitável por turistas esquecidos da ancestral miséria. Aqui está um bom indicador para o que proponho. Ou seja, admito que, depois de um período de desertificação, possa haver outro com povoamento controlado a exemplo do que se faz com a reintrodução do lince ibérico.
Há sempre alguém, mal intencionado e ignorante que virá a terreiro com o argumento de que assim se perde população. Perde-se gente mas ganha-se em rendimento per capita. Perde-se gente que gasta o dinheiro que não produz e ainda o dinheiro dos que labutam no litoral. Diminui-se a despesa sem tocar na receita. Do mesmo modo que se acabaram muitos impostos directos (sempre alvo de recriminações desagradáveis por parte da CGTP – quando isso lhe é permitido!- ) vantajosamente substituídos por indirectos que, aliás, são mais democráticos: atingem todos, pobres e ricos mesmo se as consequências em cada um destes estractos possam ser diferentes.
* Vai este folhetim para Maria L.A, amiga inesquecível numa Coimbra vestida com a cor da nossa “juventud divino tesoro”. Nesses tempos de vinho e rosas (e de chumbo e de caminhos cortados) teremos visto no cineclube de Coimbra “Las Hurdes” . Foi também o tempo da descoberta de Swift, Elliott ou Ruben Dario, igualmente citados.