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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

estes dias que passam 375

d'oliveira, 26.04.20

 

 

 

Buarcos 1634 20 - cópia.jpg

 

Diário das semanas da peste

Jornada trigésima nona

À polícia e aos costumes diz-se nada

mcr, 26 de Abril

 

 

Gostaria de começar esta digressão pela história de um bolchevique vitima dos famosos processos de Moscovo, uma longa série de infâmias politico-judiciais que diz tudo sobre o regime  soviético, mas que, na época, passou por uma defesa do socialismo contra os seus múltiplos inimigos.

Como quase todos os outros acusados, esse velho militante foi instado a confessar os seus horrendos crimes. A solicitação da polícia política, por muito estranho que pareça, foi recebida por muitos dos presos que, para salvaguardar o “partido” e a “revolução” confessaram coisas extraordinárias, impossíveis. Há autores que sustentam a tese que essas confissões absurdas eram uma mensagem cá para fora sobre a deliquescência do Estado soviético e do partido comunista.

Só assim se explicariam aquelas confissões que, mesmo se obtidas por torturas inenarráveis, são de tal modo originais que qualquer observador, e houve muitos, concluiria pela impossível verosimilhança de tais deposições.

Seja qual for o caso, a verdade é que este velho revolucionário, de origens modestas e escassa educação convencional, não se conformou. Sabia, pressentia, que seria morto fossem quais fossem as suas declarações pelo que, terá ditado para a acta mais ou menos o seguinte: “Chamo-me .... tenho sessenta anos de idade e quarenta e cinco de revolucionário. É demasiado tarde para estragar a minha biografia!”

Isto que li num livro do meu sogro, impressionou-me muito e por várias vezes conversámos sobre o assunto. Todavia, perdi o nome desse herói e, pior, o título do livro onde se narrava a sua história. Durante muito tempo, julguei que constaria de “Les bolcheviques par eux-mêmes” uma recolha impressionante de biografias do Who’s who soviético pescado na Enciclopédia Granat por Georges Haupt e Jean Jacques Marie (Maspero, Paris, 1969). Quando, finalmente adquiri um exemplar não consegui encontrar rasto dessa história.

Todavia, não venho agora reabrir o dossier infame do comunismo stalinista mas apenas, como ontem prometi, referir a minha mais prolongada prisão (1971). Preso em Coimbra, no café “A Brasileira”, fui levado para a sede da PIDE e rapidamente expedido para Lisboa. Na António Maria Cardoso fui encaminhado para o último andar. Ali havia umas salas quase vazias onde os presos recém-chegados eram interrogados. De pé e sem dormir. Estive lá por dois períodos num total de onze dias. Por razões que já terei narrado, os interrogatórios incidiram em algo que eu não tinha feito pelo que, mesmo com as dificuldades que são supostas,  consegui “não falar”.

Quando, finalmente, já em Caxias, fui visitado pelo meu sogro, consegui sem grande dificuldade anunciar-lhe que a minha "biografia estava intacta". Esta mensagem iluminou-lhe o rosto e percebi que tinha conseguido dizer a única coisa importante. Éramos muito amigos, tínhamos manias comuns e em Paris era verem-nos correr todas as capelinhas (livrarias, claro!) numa longa e minuciosa pesquisa de livros no caso quase sempre de índole política. Dois terços, três quartos dessas livrarias já desapareceram (A Joie de Lire, a Globe etc...) mas ainda sou capaz de me lembrar de cada recanto delas.

Tudo isto, esta historieta de que fui actor involuntário, resistente sem saber ler nem escrever, tem na sua raiz esta ideia. Pior do que a cadeia, do que os maus tratos (eu, em boa verdade, fora o ter estado onze dias sem dormir e de pé não posso queixar-me de qualquer violência física. Se calhar era por ser um “finguelinhas” com cinquenta e sete quilos, um pelém, e terem o receio de com meia dúzia de sopapos me estragarem mais do que seria útil e devido. E, depois, devem ter concluído que eu não era mais do que um oposicionista extremo mas não perigoso. Por perigoso entenda-se alguém com actividades ligadas ao PC e responsabilidades no aparelho), pior do que a prisão, repito depois deste parêntesis tão comprido, seria sair de lá com a consciência pesado de ter traído alguém, de ter colaborado com aquela canalha, de ter confirmado acções que poriam em risco outrem, além de mim mesmo. Isso matar-me-ia de vergonha. Ser objecto do olhar de outros mesmo que desculpabilizante era-me insuportável. Durante aqueles onze dias o meu medo resumia-se a isso, só a isso.

Quando fui para o “conforto” de uma cela, felizmente com vista para a estrada e para o rio, fiquei em paz comigo mesmo e achei que aquilo, aquela privação de liberdade, não era tão horrível como suspeitara. “Agora, pensei, é aguentar e cara alegre que isto, mais dia menos dia há de acabar”. Demorou mas acabou. E saí de lá, abatido mas de cabeça erguida, olhando os meus e os amigos de olhos nos olhos.

O encontro com Jorge Delgado foi, como não podia deixar de ser, caloroso se é que a palavra pode exprimir a cumplicidade, a camaradagem política e humana, a estima e a alegria. Se éramos amigos mais amigos ficámos. Depois de me divorciar, continuei a frequentar a casa dos meus sogros e só me pesa o facto de não ter podido ir ao enterro dele. Estava fora do Porto, em Lisboa, e só por acaso soube da morte dele. Nem sequer dei pelo anúncio do enterro por justamente este não constar da edição impressa em Lisboa. Ligo pouco a enterros, por mim, se fosse possível era embrulharem-me num pano velho e deitarem-me ao mar. Comi tanto peixe, sou tão de Buarcos, que esse seria o meu melhor túmulo. E útil para os predadores do mar. Infelizmente, parece que a lei não o permite. Podem deitar para o mar toda a merda, todo o plástico, todo o mercúrio que quiserem mas o cadáver de uma criatura parece proibido.

Ah fora eu Quincas Berro d’Água e tivera amigos como os dele que outro galo me cantaria.

Ora aqui está uma boa sugestão de leitura. Jorge Amado: “Os velhos marinheiros”. E mais outra: “Navegação de Cabotagem”, também de Amado, uma divertidíssima autobiografia que põe em cena centenas de intelectuais de todo o mundo desde Neruda a Ilya Ehrenburg ou Kuo-Mo-Jo (uma historieta delirante!) .

a vinheta: ""Atlas das costas de Espanha e Portugal" de Pedro Teixeira Albernaz, (c.1595-1662) português instalado em Madrid onde morreu. Este atlas foi encomendado por Felipe IV de Espanha, IIIº de Portugal, e é uma preciosidade pois descreve as costas da península com uma minúcia exemplar.  Foi descoberto, trezentos anos depois da sua confecção,, e deve ter sido elaborado circa 1634.  Está na biblioteca Nacional da Austria (cod. min.46)- O cartógrafo, como muitos outros portugueses, por exemplo Manuel Faria e Sousa,  autor de "Ásia Portuguesa", continuou a viver em Espanha depois da independencia de Portugal que, em boa verdade, só foi reconhecida perto de 1680. A primeira edição fac-simile ( 200 páginas, 348x446 mm) é de Siloé (Burgos) e a ilustração refere Buarcos e Figueira da Foz, evidentemente!