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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 377

d'oliveira, 09.08.18

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Fogo que arde e que se vê

mcr 9-8-18

 

 

A serra (e muita da zona envolvente) de Monchique arde há quase uma semana. 23.000 hectares já estão perdidos mas a coisa não ficará por aqui. Também já se foram casas, hortas, animais domésticos (já nem se fala nos selvagens), as cinzas atingem Albufeira, Portimão e o céu é cinzento há vários dias. A televisão mostra-nos impiedosamente mais este enorme desastre. Mostra-o até à exaustão e, como de costume, mistura tudo: odesespero das gentes que se sentem abandonadas, a angustia de moradores forçados manu militari, a partir a inanidade dos meios, filas de “meios terrestres” aparentemente à espera (de quê? De quem? De Godot?), aviões e helicópteros a despejar água e opiniões de todos os que são apanhados pelos microfones dos repórteres. Nem sempre as pessoas terão razão, não são especialistas mas apenas vítimas, ninguém lhes explica nada, dão-lhes ordens e pronto...

Ontem apareceu o senhor 1º Ministro impante e rotundo: que está atento, que este fogo é a prova por excepção da bondade das políticas governamentais, que uma árvore a arder não se composta como uma vela num bolo de aniversário. Tudo naquele tom protetor de quem ainda não percebeu que do outro lado estão portugueses com os mesmíssimos direitos e deveres de Sª Ex.ª.

De portugueses que andaram estes meses todos a ouvir que agora sim, agora é que vai ser, qual incêndio qual quê, isto vai ser “trigo limpo farinha Amparo”. À bolha imobiliária segue-se pesadamente a bolha incendiária. E as desculpas com o calor, com o sucesso de outros fogos rapidamente extintos como se não soubéssemos que, mesmo com o calor, o tempo mais que clemente do fim da Primavera e do principio do Verão criaram solos menos permeáveis ao fogo.

Em Monchique arde hoje, o que já ardeu ontem. E ontem, ardeu o que já ardera anteontem. É o fado, o destino, as Erínias, o azar, a preguiça das gentes, o eucalipto que faz viver uma inteira comunidade que ainda está presente e não abandonou as terras.

Uma associação de produtores florestais acusou as “autoridades” de nada terem feito em prol da implementação de um plano de ordenamento florestal apresentado e discutido durante vários meses. Uma secretariante criatura veio desmentir a associação: que não havia plano, que se acaso existia, só era para se iniciar em 2019, que (sempre depois das anteriores alegações serem documentalmente desmentidas) faltavam uns documentos importantíssimos (entre eles uma acta de assembleia geral e uma comunicação dos nomes eleitos nela) coisas tremendas, devastadoramente importantes que reduziam a nada o plano, os projectos, as reuniões, os ofícios trocados, as espectativas e tudo o resto.

A este respeito, a propósito do respeitinho pelo pormenor bu(r)rocrático recordo duas histórias: A mais antiga tem como protagonistas um grande médico e grande democrata, Sizenando Ribeiro da Cunha, homem da zona de Aveiro. Tinha este exemplar cidadão uma propriedade numa encosta onde além da clínica onde atendia ricos e pobres, muitos pobres, a casa onde habitava situada mais no alto. Uma estrada limitava a propriedade numas dezenas ou centenas de metros desde a entrada da clínica até à porta da casa familiar. Do outro lado da rua/estrada uma ou duas dúzias de casas de gente com reduzidos meios. Sizenando lembrou-se de ir à Junta da Freguesia e propor custar pavimentação da rua. Alegria geral. Apesar de opositor do poder instalado (o Estado Novo) ali estava um benemérito que ia gastar mais de cem contos de reis na obra de interesse geral. Quando tudo se encaminhava para o feliz desfecho, o presidente da Junta veio, de chapéu na mão prevenir o médico de que era necessári o um requerimento. Em papel selado e assinatura reconhecida notarialmente. O médico explodiu: “E quanto custa isso?”, -Cinco escudos do papel e outros tantos pelo reconhecimento!, respondeu-lhe a autoridade. Já não tenho mais dinheiro”, respondeu o indignado cidadão. E a obra não se fez.

 

Anos, muitos, mais tarde, dois responsáveis por uma entidade pública regional, dotada de autonomia administrativa e financeira, verificaram que não chegara atempadamente uma quantia da responsabilidade do Estado para pagar os salários de uma vintena de trabalhadores de uma sala de espectáculos gerida pela instituição. Os dois funcionários perceberam que a falta de pagamento afectaria o bom nome do Ministério, da entidade regional e, pior, a estabilidade das famílias dependentes dos salários em atraso. E entenderam adiantar os dinheiros necessários, pagando os salários do seu próprio bolso. Com o aplauso do senhor Chefe de Gabinete, do senhor Secretário de Estado e de uma ranchada de Directores e Subdirectores Gerais. “Bonito gesto! Sentido de Estado! Devoção à causa pública!”

Passaram-se meses, um ano mais meses! E do dinheirinho adiantado nem novas nem mandados. A soma emprestada era, apesar de tudo, importante para os dois servidores públicos. Até ao dia em que um director geral, exultante, os requereu em Lisboa, asinha, asinha. Já há dinheiro para vos pagar. Já a reunião ia a todo o vapor quando apareceram os papéis e ios cheques para solver a dívida do Estado. O Director Geral compulsou-os e empalideceu: “Isto não pode ser!” com os cheques que pagariam apenas e só as somas emprestadas, vinha também uma cobrança de imposto de selo ou algo semelhante. O dirctor geral pediu desculpa pelo facto e, num gesto, muito dele, muito do grande funcionário público que ele realmente era, pagou do seu bolso a merda da quantia referente à merda do tal selo (ou lá o que era) exigido.

Eis o Estado em todo o seu esplendor. Ao contrário do brocardo latino (de minibus non curat praetor), em Portugal, o pormenorzinho, a virgulazinha, a merdice importa mais do que a questão central. E o fogo vem. O fogo que “lixa o mexilhão” e aquece suavemente a alminha caridosa do senhor 1º Ministro... E lhe permite o arrobo vagamente poético da metáfora da vela no meio do bolo.

Ora porra!

 

 

 

 

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