estes dias que passam 378
Diário das semanas da peste
Jornada quadragésima segunda
mcr, 29 de Abril
Viva a Noiva! Fora a polícia!
Deve ter sido há trinta anos mas não o juro. Foi de certeza em Março, mês em que teimosamente, se tentava celebrar o "Dia do Estudante". A cena era sempre a mesma: a estudantada juntava-se para uns festejos, a reitoria proibia, a malta insistia e a polícia "matracava". Como saldo final restavam meia dúzia de comunicados indignados, cabeças partidas e uma mão cheia de presos. A "benemérita" engrossava os ficheiros da clientela política jovem conseguindo com isso amedrontar não poucos e assanhar outros tantos.
Ponhamos que, uma vez mais, o dia do estudante amanheceu carregado de presságios e ameaças que contrastavam com uma manhã quase primaveril. Por razões que já não recordo foi no "Técnico" que nos reunimos e lá mesmo que, sem surpresa, fomos notificados que estava tudo proibido. Ao mesmo tempo a autoridade académica, invocando já não sei que legislação, cominava a populaça a destroçar rapidamente.
Não foi preciso mais para que a reunião descambasse num comício violento pontuado por vivas à liberdade e morras à polícia e ao obscurantismo. Em menos de meia hora, tinham sido aprovados dez telegramas de protesto, cinco moções e a imediata realização de uma marcha, desde o "Técnico" até á cidade universitária, percorrendo as avenidas de Roma e dos Estados Unidos a fim de alertar a população para mais aquele agravo à democracia.
A polícia de choque demorou alguns minutos a descobrir o nosso itinerário pelo que já estávamos a sair da praça de Londres, quando começou a carga em duas frentes: Avenida de Roma e Guerra Junqueiro. Adivinhavam-se mais movimentos policiais noutras ruas pelo que, mesmo para os mais rodados de entre nós, a coisa estava mais difícil do que nunca. A confusão generalizada, as correrias fizeram com que, movidos por um imperioso apelo da fé, entrássemos de supetão, na Igreja de S. João de Deus buscando o tradicional direito de asilo.
Em má hora o pensámos porquanto a polícia de choque não estava disposta a fazer destrinça entre edifícios laicos e religiosos.
Pior: realizava-se, naquele preciso momento, um casamento com uma noiva toda de noiva, fraques, capelines, enfim tudo de estadão.
Imaginem leitores, o caos que a sarrafusca provocou nos santos lugares sobretudo, sabendo-se como se sabe, que quando toca a arrear na freguesia, a polícia não distingue caras, casos, classes mostrando-se, nesse único ponto, uma especial adepta da democracia radical.
Lembrado dos meus tempos relapsos de catequese consegui introduzir-me na sacristia e daí noutra dependência onde permaneci mudo e quedo durante quase uma hora.
Fui descoberto pelo padre da paróquia que me exprobou severamente a invasão esquerdistoide e me propôs uma confissão. Embora indiferente entendi dar-lhe esse pequeno prazer e relatei-lhe ipsis verbis os meus últimos cinco anos de vida fora do redil. Cumpri a penitência que sou pessoa de princípios. E salvei o costado magro de uma carga, que, a avaliar pelo estado calamitoso dos meus amigos reencontrados mais tarde, tinha atingido o grau máximo na escala de Richter das cargas policiais.
Passados tantos anos, é, talvez tarde para desculpas mas sobra tempo para a gratidão:
VIVA A NOIVA!!!
3 notas
Este texto foi publicado em fins de 90 num livrinho que empreendi e que tinha por título A pedra no sapato a pata na poça. Foi editado pelo Centro Cultural do Alto Minho e, para surpresa minha, vendeu-se bem apesar do editor Fernando Canedo (que já não está aqui para me contraditar) desconfiando de distribuidores
(“uns ladrões que nunca pagam ao editor!”, resmungava ele, provavelmente com alguma razão) tivesse optado por o distribuir por duas dúzias de livrarias que pelos vistos pagavam.
Eu nunca tinha pensado em publicar fosse o que fosse, fora alguns artigos e críticas em meia dúzia, nem tanto, de jornais e revistas (Vértice, O Jornal, Expresso, JN, 1º de Janeiro e Comércio do Funchal). Todavia, vá lá saber-se porquê, fui em meados de 90 contactado por gente da redacção do “Público” que, gentilmente e generosamente (muito generosamente $$$ ), me convidaram para colaborar com regularidade semanal com crónicas que não deviam exceder umas centenas de caracteres , já não recordo quantos mas bastará para quem for mais curioso contar os que constam da crónica acima.
A mesma pessoa que me convidou aconselhou-me a ter em carteira uma espécie de bolsa de crónicas não fosse faltar-me a inspiração no pior momento. Eu, espantado pelo pagamento prometido, afiancei-lhe que sim e atirei-me ao trabalho, pela primeira vez remunerado. Porém, ainda não começara a ser publicado, fui com mais outros cronistas convidados que, a crise já não permitia convidar novos colaboradores.
Que fazer com o material já escrito? Lembrei-me de juntar uma dúzia de crónicas e oferecê-las no Natal a também uma dúzia de amigos. Um deles, achou que aquilo com mais uns pozinhos dava um livro. Um editor aceitou e cheguei a ver “provas”. Todavia, faliu. O meu amigo não desistiu e arranjou outro que, acreditem ou não, acto contínuo, fechou portas. A minha Mãe declarou que eu tinha “mala pata” e quando eu estava prestes a acreditar nela, surgiu um terceiro, desta feita no Porto e meu amigo. “É desta”, pensei. Não foi. O meu amigo zangou-se com os sócios, saiu batendo a porta e levando o meu “futuro livro” debaixo do braço. E eu sem saber de nada!
Finalmente, o Manuel Simas Santos, tirou-se de cuidados e apresentou-me o quarto candidato a editor. Chamava-se ele, Fernando Canedo e presidia o Centro Cultural do Alto Minho que tinha uma editorial com mais de uma dúzia de livros publicados.
O livro vendeu-se bem, para minha surpresa. Houve mesmo alguns leitores que o difundiram entre amigos com inesperados e vultuosos resultados. Há uns anos o Fernando Canedo morreu e eu fui ao CCAM ver quantos exemplares restavam e comprei quase um cento deles deixando apenas os poucos que a editora entendia dever conservar. Edição esgotada, portanto!
Entendi, recolher desse livro quatro crónicas que relatam, com alguma bonomia e outro tanto de eventual ironia (ou auto derisão...), algumas aventuras politico-policiais em que me vi metido. E entendi ainda que este período entre o 25 A e o 1º de Maio era uma boa altura para, excepcionalmente, me reeditar, agora em versão digital.
Espero que os leitores/as se divirtam. Para chatice já basta o cabrão do vírus. E gostaria de prevenir que o tom ligeiro, acaso bem humorado, com que narro estas historietas, não tenta obliterar a seriedade do que se passou naquele áspero tempo. Tenho o maior orgulho em o ter vivido, em ter feito o que fiz, a maior amizade pelos meus antigos companheiros, muitos dos quais já desaparecidos.
Cuidem-se! Isto ainda está a rondar por aí. Era o que me faltava perder os poucos leitores que me aturam.
A festa anda no ar. Duas propostas musicais: o meu querido amigo e colega Adriano sobretudo, já agora, a cantar temas açorianos. E “don Giovanni”, Mozart. E oiçam com ouvidos bem abertos o dueto “La ci darem la mano”. Mozart, dizia alguém, e bem, é como o porco: aproveita-se tudo.
E, não resisto, apanhem outra opera extraordinária, provavelmente a de que mais gosto: “Cosi fan tute”. Estes discos agora andam por aí a rastos de barato.
* a vinheta: igreja de S João de Deus, praça de Londres, Lisboa. Aceite o agradecimento de um agnóstico reconhecidamente grato...