Estes dias que passam 379
Toirada à portuguesa ou garraiada infantil?
mcr 8-11-2018
Nos meus já longínquos tempos de infância, o Casino Peninsular (vero nome do estabelecimento figueirense) dava de longe em longe umas garraiadas insignificantes onde criancinhas tontas toureavam uns pobres vitelos assustados. Eu nunca apreciei tais festividades e, muito menos, as touradas a sério, Aliás só assisti a uma e foi tal o meu berreiro que os meus pais nunca mais me levaram com eles. Nestas coisas, detesto tudo, desde os olés até às pegas, o toureio a cavalo ou os matadores (que em Portugal só matam lá para os confins do Alentejo) bandarilheiros sem esquecer o “inteligente”.
Não gosto e pronto, mesmo se por isso não me sinta mais civilizado do que, por exemplo, o Manuel Alegre. Também não gosto de caça seja ela da de cá ou da grossa. Nunca percebi porque é que se havia de matar um leão ou um elefante, mesmo se este último desse carne para uma aldeia inteira e esfomeada.
E já que estamos numa de desgostos, nunca percebi o boxe, a luta livre ou aquela macacada a fingir do mesmo. Por uma vez irrepetível vi um festival desses no Palácio de Cristal onde um temível “mMascarilha” arreava em toda a marabunta. O público estasiado e entusiasmado rompia em impropérios e o lutador fingindo-se zangado chegava-se às cordas e ameaçava saltar cá para fora. Havia gente que se punha de pé preparada para cavar rapidamente, guinchando de emoção e de susto. Um horror!...
Apetece-me, já agora, falar do futebol profissional onde se assiste a tudo menos a desporto e seriedade. Desde as direcções dos clubes às claques raivosas, aos jogadores batoteiros cujo amor à camisola é o que se sabe, aos treinadores que entram e saem consoante os resultados, até ao público (aliás relativamente escasso) que se apresenta trajado a rigor com cachecóis e demais adereços e quando interrogado bolsa as mais extraordinárias teorias sobre o jogo a que assistiu, tudo me deprime. Mais me deprime, o nacionalismo bacoco com que se olham as Selecções ou certos jogadores (e não cito nomes, seguindo o actual pundonoroso silêncio que recai sobre ele(s)).
Todavia, nenhum destes factos me obriga a estatuir desde o Poder (que aliás, e felizmente, não tenho) com bojardas sobre a civilização ou a cultura (com letra grande ou pequena).
Porém bastou um suelto da actual ministra da Cultura para a discussão do Orçamento estar subvertida. Agora, fala-se do gosto ou da medonha tirania do politicamente correcto ou da incivilidade do espectáculo taurino. Uma tourada!
Eu não conheço a senhora ministra de turno na cultura. Provavelmente está à mesmíssima altura dos seus antecessores e Deus sabe o quanto valiam (os leitores porventura recordados do que por aqui fui escrevendo também saberão do afectuoso respeito que dediquei a tais criaturas).
Desta Ministra nada sei, ou o que sei é algo estritamente pessoal com que nada tenho, nem acho que alguém deva ter, justamente por ser do foro íntimo dela e nada de útil me dizer sobre as capacidades da pessoa, pelo que é irrelevante.
Porém, começa mal ou, pelo menos, desastradamente. Também é bem verdade que, não tendo sido consultada sobre o orçamento da sua actual pasta, pouco poderá dizer a não ser generalidades. A senhora ainda nem aqueceu o lugar e tenho a convicção de que deve andar um pouco perdida naquele labirinto de institutos e direcções gerais e regionais que se atropelam e raramente (estou a ser generoso) cooperam. Justamente por isso, devia abster-se de declarações avulsas e bombásticas. Uma vez feitas, deveria, remeter-se a um salutar silêncio e não insistir, com tanta soberba como falta de senso, na defesa do seu ponto. Não gosta de touradas? Eu também não! Acha que a civilização as condena ao desaparecimento? Gostaria mas não estou assim tão certo. Farto-me de ver por aí alminhas gentis a reinventarem danças e modas tradicionais (as mais das vezes com pouca tradição), a tentarem salvaguardar património construído sem uma ideia clara de como o manter útil e vivo ou amaldiçoar os portugueses actuais pelos feios pecados dos descobridores ou pelas conquistas de Afonso Henriques. Ainda se há de descobrir que Aljubarrota foi uma tentativa de genocídio dos castelhanos...
Sª Ex.ª quer uma causa? Ei-la: De Portugal saem anual, mensal ou semanalmente livros antigos cá editados de que só restam exemplares únicos na Biblioteca Nacional. Com sorte, também haverá alguns nas bibliotecas do Porto e Coimbra. No que toca à nefanda expansão portuguesa e ocupação (obviamente medonha) de África talvez existam também na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa que parece atravessar sérias dificuldades –este ano o Boletim é apenas virtual!-
Essas obras são compradas, e por bom preço, pelas bibliotecas universitárias americanas que também não desdenhariam adquirir colecções de arte africana em mãos portuguesas. As bibliotecas municipais, que uma campanha da antiga SEC (Secretaria de Estado da Cultura) estendeu a todo o país, não aceitam doações por não terem espaço (fizeram-nas sem depósitos que se vissem) por não saberem, por burrice, por não terem pessoal especializado. E ainda bem: algumas têm, nas mesmas caixas onde foram acondicionadas por doadores generosos, os livros oferecidos. À espera que a bicharada se eve nas folhinhas velhas mas tenras da livralhada.
O Ministério da Cultura teve um programa de ajuda à edição de autores portugueses e, por isso, recebia uma ou duas centenas de exemplares de cada obra subsidiada. Vi-as, com estes com que morrerei, em pilhas numa espécie de garagem. Felizmente havia pessoas que lá iam roubar um que outro livrito para ler.
Uma edição inteira (“Retratos de Camilo”) andou anos sepultada numa cave da DRN e, que eu saiba, nunca viu a luz do dia.
O resto (substancial) das edições da Comissão dos Descobrimentos andou anos num armazém nos arredores de Lisboa. Por várias vezes fui por alguns deles à loja da Torre do Tombo onde se vendiam alguns em saldo. Os que lá não estavam só poderiam vir se houvesse (mas não havia!...) quem por eles fosse ao citado armazém. Nos alfarrabistas, os mesmos livros atingiam preços especulativos (nomeadamente alguns exemplares da revista “Oceanos”).
Dessa gesta editorial há pelo menos uma história ridícula: a comissão entendeu editar o Atlas de Fernão Vaz Dourado. Todavia nem um fac-símile decente conseguiu fazer. A versão apresentada vem com os mapas reduzidos, os mapas de dupla folha por não estarem encarcelados estão ilegíveis na parte central. Enfim uma tristeza apagada e vil. Dirão os ignorantes que mais valia assim que nada. Erro, erro crasso: em 1948, graças ao Visconde da Lagoa, o Instituto de Alta Cultura patrocinou e a Livraria Civilização Editora pagou a edição fac-simile.
Actualmente, é empresa espanhola Manuel Moleiro Editores que oferece uma edição (absolutamente idêntica à da Civilização) com tiragem única de 900 exemplares. O preço é salgado, salgadíssimo. Se não estou em erro, foi um exemplar desta edição que o Rei de Espanha ofereceu ao Presidente da República em Salamanca!
Com os actuais meios, a INCM poderia editar o mesmíssimo fac-simile bastando-lhe copiar a edição de 1948. Coisa idêntica poderia ocorrer com o Atlas de Lázaro Luís (Academia das Ciências 1990) ou com essa prodigiosa colecção do Visconde de Santarém (os “Atlas du vicomte de Santarém”) que foi também republicada em 1989 pela Administração do Porto de Lisboa, sob a direcção científica de Martim de Albuquerque.
Todas estas edições estão esgotadíssimas e correm nos alfarrabistas a preços que nem vos digo nem vos conto. Outros exemplos de atlas devidos a portugueses pura e simplesmente nunca foram alvo de edição nacional (menciono apenas o de Diogo Homem (Moleiro ed) ou o Atlas de Pedro Teixeira (Siloe), mandado fazer por Filipe III (IV de Espanha) e que descreve maravilhosamente toda a costa portuguesa (englobada na costa geral da península).
Porém, agora me lembro!, estúpido que sou!..., tudo isto soa a “descobertas” nefandíssimo acontecimento que um ramalhudo leque de personalidades entende ser uma abominação. Não sei se a Sr.ª Ministra é do mesmo parecer mas aqui está um tema sobre o qual muito gostaria de a ouvir.
Sobre os seus gostos pessoais e as suas opções de vida não tenho qualquer curiosidade. Isto sim é que é ser civilizado, estar no século XXI mesmo se no anterior onde permaneci largas décadas já pensasse rigorosamente a mesma coisa.
(quanto ao Orçamento, é o que se sabe: a discussão está encerrada pois sabe-se à partida, que está aprovado mesmo que os parceiros menores finjam que querem mais. Querem nada...
* a gravura vem d antiquíssima Creta, a do minotauro. De todo o modo parece uma tourada mais simpática do que as actuai. Mas uma tourada, de todo o modo.