estes dias que passam 379
Diário das semanas da peste
Jornada quadragésima terceira
A"MOVIDA"MADRILENA ANTES DA"MOVIDA"
mcr, 30 de Abril
Há mitos que têm a pele dura e demoram em persistir para além de toda e qualquer decência. Um deles é o de Madrid capital da movida.
Passei por lá vai para seis meses e mover o que se chama mover só vi os êmbolos das seringas dos "drogadictos".
Desculparão os mais radicais, mas as únicas pessoas interessantes no que se convencionou chamar período da movida, já existiam antes, e, num dos casos, continuam. Refiro-me a D. Henrique Tierno Galvan e a Francisco Umbral. O resto não passava de um pacho culturaloide simbolizado com a ascensão da "gente guapa" e anexos marbellenses que faziam a glória (e o lucro...) da "Hola".
Movida a sério, e em Madrid, conhecia-a eu no ano de 75, mais propriamente entre meados de Setembro e fins de Outubro. Eu conto:
A Faculdade Internacional de Direito Comparado e Santa Gulbenkian (graças e louvores a todo o momento lhes sejam dados) entenderam na sua (delas) infinita sabedoria fazer deste vosso servidor um verdadeiro euro-jurista. Para o efeito concederam-lhe ao longo de anos, bolsas que não sendo faraónicas eram mais que decentes. A de Madrid não foi excepção pelo que se não melhorei significativamente os meus conhecimentos juridicos consegui, em quatro semanas, de noites brancas, ficar ao par da noite madrilena e, milagre dos milagres, da outra "movida" da altura.
Expliquemo-nos: entrei em terra espanhola a 27 de Setembro de 75 depois de esperar 6 horas na fronteira. Os espanhóis não estavam propriamente satisfeitos com a lusitanagem que, no dia anterior, lhes tinha assaltado e saqueado a Embaixada de Lisboa e o Consulado do Porto. Protestava-se contra a execução de mais um grupo de políticos o que era louvável e honroso. Roubaram-se, todavia, muitas coisas o que deu ao acto o toque canalha que ainda hoje nos envergonha.
À chegada a Madrid tive oportunidade de verificar que Portugal não gozava de boa reputação entre as autoridades. E isto chegou mesmo ao ponto de mandarem arrear a bandeira portuguesa que, com mais uma dúzia, ornava as instalações onde decorria o nosso curso.
Ao ver a afronta à bandeira e com o intrépido apoio da catalã Marguerita, da basca Maria del Coro e da castelhana Pilar, recorri ao professor Salinas director do Instituto para os protestos patrióticos de usança. Ao fim de dez minutos de conversa o professor abriu a porta num gesto dramático e chamou-nos. Pelo corredor fugiam estudantes e os polícias que os perseguiam até metralhadoras usavam.
Sobre ser um homem de bem o professor Salinas era, naquele momento, um homem envergonhado. Lembrado de tempos idênticos cumprimentei-o e saí estreando, nesse momento, a primeira cacetada espanhola. Faltava-me para a colecção e, como era português, pareceu-me adequado desandar rápida e silenciosamente. O mesmo fizeram as do país irmão que entretanto guinchavam fortes "hijoputas" logo que se viram a salvo. Acompanhei-as no nosso vernáculo no que fui aplaudido por uns galegos emigrados na construção civil. Foi com quem acabámos a primeira jornada madrilena a beber vinho do Ribeiro e a comer empanada.
Três dias depois, conduzia eu o cansado Austin perto da Plaza de Oriente quando um polícia me mandou parar. Em má hora o fiz que o carro que me seguia me meteu a mala dentro.
Os minutos que tive de gastar para convencer um enfatuado agente que não necessitava de ajuda policial deixaram-me encurralado. Toda a Espanha de "olé e pandeireta" resolvera, num último estertor, sair à rua para apoiar o cadaveroso Franco, espúrio filho do Ferrol.
Imaginem-me leitoras, cercado de franquistas assanhados que só paravam de cantar o "Cara al sol" para dar morras ao México e a Portugal países onde os excessos ainda que justificados foram evidentes... Durante os dias restantes a cidade alternava entre a violência nos "campus" e a noite louca, entre a "gauche divine", os "tablaos progres", e encontros com tudo o que era clandestino e que ia tomando posições na cidade como quem sabia próximo o fim do regime. A polícia conseguia apanhar células inteiras mas eles vinham de todo o lado, da França, da Bélgica, de Portugal com um verso de Celaya ou de Alberti na boca e a vontade firme de acabar uma guerra que tinha quarenta anos e um milhão de mortos a mais. A Espanha, como dizia o poeta, "estava em marcha".
Gaudeamus igitur
Quem gostaria de ver Madrid e galegos amavelmente cúmplices seria Fernando Assis Pacheco meu amigo desde 1960. Sabia destas charlas, pedia, amiúde, notícia da publicação em livro. Já o não verá que um coração daquele tamanho que tanto, e a tantos , se deu não podia durar muito ...
Nota: já aqui referi vários maus hábitos meus, entre os quais o mais que gravoso de escrever. Durante algum tempo, colaborei numa bela e bem ilustrada revista do CCAM que tinha o duvidoso nome de “Mea Libra”.
A minha colaboração reduziu-se a uma dúzia de crónicas com o título geral “Gaudeamus Igitur”, primeiro verso de uma cantiga que é mais ou menos e oficiosamente o hino dos estudantes europeus. Dessa série, editou-se uma separata de que ainda terei um que outro exemplar perdido na cave ou em qualquer outro recôndito lugar. Há já bastantes anos, publiquei-a neste mesmo blog e se o volto a fazer é apenas para cumprir uma promessa a alguns leitores de narrar três ou quatro aventuras de um passado demasiado longínquo.
Hoje celebra-se o “dia internacional do jazz”, ocasião para propor alguns discos. Nada dos incontornáveis que esses os meus leitores já conhecem de cor e salteado. Trata-se de alguns discos muito simpáticos, claramente bons, e menos frequentes nas listas de compras.
Ei-los:
“ Art blakey & the Jazz Messengers” (por causa de Noanin’...)
Lester Bowie “all the magic” com uma homenagem belíssima a Armstrong cantada por Fontel a Bass
Miles Davis The man with the horn
dois concertos imperdíveis
Esquire’s All American hot jazz sessions
Toronto, Massey Hall, May 15, 1953 se há algum disco fundador do bebop é este
E uma antologia absoluta do jazz em tempo de guerra:
The complete Jazz at the Philarmonic on Verve 1944-1949
a vinheta: Art Kane: Jazz portrait, Harlem 1948.
Andei anos atrás deste poster. Quando já tinha desistido de o encontrar, eis que farto de estar numa bicha para ver uma exposição de escultura de Picasso no Pompidou, deixei a CG a guardar o lugar e fui dar uma espreitadela numa loja de posters. E não é que o encontrei. Quando disse ao vendedor, magrebino e manhoso que andava à procura daquilo há mais de dez anos, ele perguntou-me se eu figurava nele. Com pesar, respondi-lhe que não que não tinha essa honra...