estes dias que passam 380
diário ds semanas da peste
jornada quadragésima quarta
mcr, 1 de Maio
Berlim, alternativo mas ...
A admissão dos nossos erros
aproveita ao inimigo .É verdade.
Mas as nossas mentiras
aproveitarão a quem?
Wolf Biermann
Quem, no ano de 70, assentasse arraiais em Berlim (ocidental) e não soubesse o mínimo exigível de alemão corria o risco de pensar que a "ilha da liberdade" estava nas mãos da esquerda extra parlamentar alemã e que Rudi Dutchske se preparava para ser eleito burgomestre. Conservo ainda dois grossos dossiers carregados de panfletos publicados pelas mais diversas organizações onde se documenta esta alegre azáfama.
Não se podia almoçar sossegado na cantina da universidade técnica -todos os dias uma organização diferente invadia o refeitório, um porta-voz rugia um discurso que começava por "Genossen und Komilitonem" e continuava cheio de "gegen", "Kampf" e "Volk". O serviço de ordem que o acompanhava encarregava-se de conservar os comensais calados e atentos. Houve mesmo um grupo feminista radical que nos proibiu não só de falar mas também de comer. Pela parte que me toca aceitei, sem tugir nem mugir, a classificação de porco chauvinista subdesenvolvido. É o que se chama " (não) comer e calar".
Dias depois, com o mesmo entusiasmo com que o condenado caminha para o patíbulo, fui arregimentado para uma sessão de "uma obra de arte revolucionária da classe operária chinesa" chamada "O regimento vermelho feminino", um ballet em seis actos (!!!). A funçanata terminava com um horizonte refulgente onde o fácies do presidente Mao nascia, como o sol, entre raios vermelhos.
Acabada a sessão, a populaça, arrebanhada pelo "KPD m-l" para este purificador e longo acto de cultura proletária, levantou a pata e cantou, com apropriado sentimento, a Internacional.
O proletariado berlinense frequentava os cinemas soft-core da Ku-damm enquanto os verdadeiros revolucionários acorriam ao "Arsenal" ver "La hora de los hornos", "Espoir" e Eisenstein.
As manifs eram diárias e dias houve em que eram mais do que uma. No Goethe-Institut, no dia seguinte, comparávamos as virtudes da passeata em que tinhamos participado, número de aderentes, qualidade do serviço de ordem, brutalidade da intervenção policial, número de presos e feridos, etc.
Havia jornais, jardins-escolas, bares e galerias alternativos. Por acaso numa delas consegui apanhar esse clássico absoluto que se chama "La Philosophie Bantoue" de Tempels e, pasme-se, o "Verra la morte ..." de Pavese.
Mas "nesses tempos tumultuosos", que Berlim vivia, nem tudo eram rosas e nem sempre as coisas acabavam com um par de cabeças rachadas.
Num sábado (4 de Novembro) durante uma gigantesca busca policial foi abatido Georg von Rauch da Fracção do Exército Vermelho. Conta quem viu que morreu no ar pela força das balas disparando ele mesmo, ainda que sem êxito, contra a polícia.
Tenho ainda os panfletos da ocasião assinados por gente tão diferente quanto a Liga contra o Imperialismo, a União Comunista m-l e os misteriosos MLHb, MLH Pol, MLHBan, MLHKybel, ROTZök/ML para já não citar o afamado SSK/ÖK.
Curiosamente as manifestações que se sucederam se bem que violentas e participadas não me pareceram superiores às que reclamavam a revogação do artº 218 (sobre o aborto) ou as que combatiam as reformas das escolas superiores.
A extrema esquerda descobrira e inventara tantos inimigos, dividira-se de tal modo e levara os métodos da luta de classes a tais extremos que perdera definitivamente o comboio.
Não sabia mas já agonizava. Como do outro lado do muro, morriam, aqui, docemente ideais, verdades, princípios, bandeiras e velhos revolucionários.
Nota: texto republicado aqui com a alteração de cinco inocentes palavras. Pertence, como os anteriores ao livro “A pata na poça…”, já fartamente citado. Se alguém o julgar melancólico acertou. Com o decorrer dos últimos dois ou três anos anteriores eu fora perdendo certezas absolutas, dogmatismos perversos e a paleta simplificada (branco/preto) com que via o mundo. Em Berlim, aquela “verdade” (que “é sempre revolucionária”, Lenin, dixit) saltou-me ao caminho. O espetáculo era triste, absurdo, bom para autistas profundos ou catatónicos em último e desesperado grau.
Cito, no texto, três autores Tempels, Biermann, e Pavese. Só o último está traduzido mesmo se boa parte dos seus livros estejam há muito esgotados entre nós. Todavia, os alfarrabistas, esses príncipes do amor aos livros, costumam ter alguns exemplares. Para quem não sabe alemão, há edições francesas bastante razoáveis, da poesia de Biermann. Na altura em que fui um “berliner” era muito apreciado e obviamente banido da DDR para onde tinha emigrado. Tempels é um clássico dos estudos africanos.
Rudi Dutschke, nascido na RDA e emigrado para Berlim Ocidental dois dias antes do “muro” ser erguido, foi um famoso dirigente do SDS. Sofreu uma tentativa de assassinato que, provavelmente, causou a sua prematura morte em finais de 70.
A vinheta: famoso cartaz da liga dos estudantes socialistas alemães (os Jusos). Tive-o durante anos pendurado na parede mas suponho que foi confiscado pela pide numa razia feita à minha casa. Pelos vistos, e em reprint, vende-se a 400 euros! Numa tradução livre significa “Toda a gente fala do tempo (que faz). Nós não!”