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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 382

d'oliveira, 03.05.20

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Diário das semanas da peste

Jornada quadragésima sexta

Projectos abandonados

mcr, 3 de Maio

 

 

Em princípios de Abril deveria ter ido passar uns dias a Paris. Durante anos, foi um dos meus melhores hábitos. Afreguesei-me num pequeno hotel em Saint Germain des Prés que praticava preços módicos e condizentes com a minha bolsa. Eu, por mim, durmo em qualquer sítio mas como ia acompanhado, tinha que encontrar algo que não escandalizasse a minha mais que tudo. Melhor dizendo, a gerência anterior e depois a actual. Então esta, a CG, é um perigo pois tem a mania de lavar o que está lavado.

De todo o modo, quando o anterior hotel fechou para se transformar num quatro estrelas, lembrei-me de regressar ao Saint Pierre, um estabelecimento na r. de l’École de Medicine, mesmo em frente à sede de um dos clubes revolucionários dos finais de 1700, o dos cordeliers que foi dos mais intransigentes. Acabou tudo guilhotinado, excepção feita a Marat que piedosa Charlotte Corday mandou ad patres quando o referido cavalheiro a recebeu na sua famosa banheira. Ignoro se esta entrevista tinha da parte do ilustre cidadão alguma finalidade concupiscente (não é todos os dias que se recebe uma donzela todo nu dentro de uma banheira!...) mas a intemerata tinha apenas em mente cravar-lhe um facalhão no coração. E não se arrependeu, antes confessou placidamente o crime. Ela e o seu advogado recusaram a oferta de Fouquier Tinville, o acusador público, de a apresentar como louca a troca de a libertarem.

Desculpem a digressão histórica mas a revolução francesa não é só Saint Just, Danton ou Robespierre e Marat. É também a de muitos opositores e outros tantos desiludidos que acabaram também eles no patíbulo.

Prtanto, o pequeno hotel Saint Pierre, frequentado pelos meus sogros e, pelos vistos, por Mário Soares durante o seu exílio francês. Está situado nas traseiras de uma imensa livraria a Gibert onde, ao longo de cinquenta anos terei gasto uma pequena fortuna. Eu sou, ou tornei-me, muito “rive gauche” e naquelas ruas entre a Sorbonne, o Luxemburgo, os cais e Montparnasse, conheço cada casa, cada esquina, cada café e todas, todas sem excepção, as livrarias (as desaparecidas e as que ainda se aguentam).

Como calculam, não fui. Em princípios de Junho queria fazer uma surpresa à CG: Florença que ela não conhece com mais umas voltas por Piza, Arezzo, Siena. Também já posso pôr de parte esses projecto pois ela anda aterrada com o covid e, quase certamente, também não haverá condições para esta viagem. Fic para o ano se eu lá chegar e se... Nisto, os “se” são tantos que nem vale a pena gastar muito latim com a hipótese.

Finalmente, tinha também um terceiro projecto que era levar a CG, a Ana e o Nuno e o Nuno Maria, minha perdição, para um hotel muito simpático na costa galega. Suites excelentes amplas com uma kitchinette optima para o chá da tarde, piscina, praia privativa, um bom serviço de restaurante. Em alterntiva, o mesmo hotel em Ofir onde estivemos no ano passado (a Ana tem um forte receio de levar o Nuno Maria para muito longe da pediatra...).

Também esta ideia está em forte, fortíssimo, risco de naufragar. Ou seja, tudo parece resumir-se a um velho slogan dos anos 69/76: Calda, calda, l’estate sera calda! Por acaso era o autunno (outono) mas tanto faz.

 

 

 

Ao dizer isto, tenho plena consciência da enorme distância que vai dos meus privilégios até à sorte de dezenas, centenas de milhares de portugueses para os quais o futuro nem projectos de qualquer natureza alberga. A procissão do desastre ainda vai no adro, infelizmente. Mesmo que o “desconfinamento” resulte, vamos ter pela frente muitos meses de incerteza, angústia, desemprego, quebra de produção, necessidades de toda a espécie. Isto sem falar na hipotética segunda vaga, na espera ansiosa por uma vacina, na difícil reversão dos hospitais públicos que, para combaterem o covid, deixaram tudo o resto para trás.

Agora, todos falam no êxito do SNS mas convirá lembrar que não foi exactamente o sistema que venceu mas sim e com que enorme esforço e desproporcionado sacrifício, o labor devotado, generoso e heroico de médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde. Os problemas estruturais são exactamente os mesmos de há quatro meses a começar pela falta de profissionais (gritante e infame, no caso dos enfermeiros que em Inglaterra mostram o que valem) e que, cá, foram vítimas do mais repugnante processo de intenções montado pelo sistema.

Às mortes do covid, irão juntar-se todas as outras, silenciadas, de gente que esperou demasiado tempo por consultas, tratamentos, cirurgias, diagnósticos.

Ouvir, como ouvi, nauseado, a entrevista da Ministra da Saúde, um notório exemplo do princípio de Peter, do solilóquio, da arte de ladear as perguntas e da “cassete”, foi um esforço e uma provação que me hão de ser descontados quando prestar contas.

A esta senhora e à colega da Cultura terá de se juntar uma terceira personagem que rege a Segurança Social. A falha dramática nos pagamentos às vítimas do lay off foi desembaraçadamente atirada para o lado como se esse dinheiro não fizesse falta a dezenas de milhares de pessoas. Atirar para as empresas a obrigatoriedade de adiantar as importâncias devidas aos trabalhadores é desconhecer a realidade do frágil tecido económico. Tanto mais que, numa gigantesca percentagem, se trata de micro, pequenas e médias empresas. Lojas de rua, livrarias, barbeiros, cafés, restaurantes, alojamento local, prestadores de vários serviços com porta aberta, todos estão numa situação desesperada. E muitos, provavelmente nem poderão reabrir...

A vida dita cultural está no fundo do abismo. As livrarias não vendem, os editores não editam, os discos não se produzem, os concertos ainda menos, os trabalhadores invisíveis pararam, o post palco parou, as galerias não vendem. São apenas alguns milhares mas todos eles trabalhavam a recibo verde, pelo que estão desamparados. Desamparados e sem dinheiro.

Nessum dorma!

A procissão ainda vai no adro. Até um optimista como eu, sabe, tem de saber, que “desconfinar” vai demorar mais tempo do que fechar tudo e todos a sete chaves. É que agora há o medo legítimo de pôr o pé na rua, a ideia de que, depois de maus dias, piores poderão vir. E nem o sr. Primeiro Ministro, o “optimista irritante” se coibiu de anunciar (e bem!) que estamos a pisar gelo fino, muito fino.

Será que alguém julga que o turismo, esse maná que caiu estrondosamente na cabeça de tantos, vai num ápice regressar em força já no Verão? Alguém recorda, os centos de brasileiros que se foram apinhando no aeroporto de Lisboa, desempregados, desesperados a caminho de um possível suicídio que é o regresso ao país desse bolsonaro, um pateta ignorante, estúpido e perigoso?

O Banco Alimentar avisa que os pedidos de ajuda dispararam para números assustadores. Ainda por cima não pode fazer a sua habitual recolha de donativos e não são os contribuintes como eu, que querem ajudar, que poderão substituir a generosidade anónima de uma multidão que não vai ao supermercado senão uma vez por semana. E que faz contas à vida. Que não quer dar hoje o que lhe pode faltar amanhã.

Tenho tentado, nestes escritos, dar um pouco de ânimo aos meus leitores, muitos ou poucos. Mas, uma vez sem exemplo, vejo-me obrigado, tenho o famoso “dever cívico” de afirmar que o forno não está para bolos, como dizem os do outro lado da fronteira. E contar com a “Europa” por muito que eu seja pró europeu, é, para já contar com sapatos de defunto. Claro que um plano Marshall seria maravilhoso mas quem fala nele não sabe como foi, não percebe em que condições foi lançado, esquece a guerra fria e, mais importante, o facto de haver um país riquíssimo que poderia dar-se ao luxo de ser generoso, de dar para poder mais tarde receber, de ganhar terreno aos soviéticos e satélites forçados e, cortar o caminho às quintas colunas políticas e sindicais que em França, na Itália, nos países ocidentais industrializados mas arrasados pela guerra, tentaram sem êxito adubar o terreno para os amanhãs que cantam.

E isso, esse combate mais duro, só terminou em 1949, quando Stalin deu por terminado o bloqueio de Berlin. A guerra fria que estava a aquecer voltou a ser fria depois.

É cá que primeiro tem de ser encontrada uma solução que convença os países europeus ricos a abrir os cordões à bolsa. E não vale a pena jurar que a austeridade não voltará. Vai voltar obviamente. Resta saber em que formas. Mas voltará. Sem apelo nem agravo.

Amanhã é um novo dia. Que seja bom, eis o meu voto. Que seja bom para os que voltam a trabalhar. Se for bom para eles será bom para mim. E sobretudo que não me venham chatear se eu sair à rua. Sairei com peso e medida que é esse o meu direito. O “dever cívico” é apenas um conselho e será bom que os agentes da autoridade saibam isso.

 

Duas observações: não se entende a autorização de fazer surf quando se proíbe a de fazer natação

Se se percebe que os cafés só abram na segunda fase entende-se mal a não autorização de abertura das esplanadas onde o distanciamento social é facilmente factível. E também pode ser verificado o tempo de estadia dos clientes. Pelo menos para um café mesmo em copo de plástico... (declaração de interesses: sou louco por um café feito num café, as cápsulas são uma tristeza.)

 

*a vinheta: “alminhas”, uma peça do famoso artista de Barcelos Mistério. Adquirida no fim dos anos 70. Dimensões: 35x23x5, cruz 10cm