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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 388

d'oliveira, 09.05.20

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Diário das semanas da peste

Jornada quinquagésima primeira

Uma guerra acaba, outra continua

mcr, 9 de Maio

 

Do primeiro 9 de Maio quase não me lembro, mesmo se por essa altura meu pai regressou dos Açores para onde fora integrado no Batalhão de Metralhadoras 2, da Figueira da Foz. Era alferes (ou tenente?) médico e terá embarcado uns meses depois do nascimento do meu irmão. Nós e a minha mãe acolhemo-nos à casa dos avós maternos de onde também partiria o tio Zé integrado numa força que iria reocupar Timor. Se bem me lembro, essa foi a viajem de uma vida desse tio. Nunca terão chegado a Timor mas, entretanto passaram uns belos tempos em Moçambique e, suponho na Índia.

O meu avô materno foi toda a vida, ou quase, militar, oficial do quadro do antigo “Exército Colonial” e esteve destacado em Angola que percorreu de norte a sul e de leste a oeste. Também esteve em S Tomé e no Príncipe mas, de facto, Angola ocupou-lhe quase todo o tempo de serviço militar. Em 1940, foi reformado.

Na casa dos avós havia ainda cinco filhos, três dos quais ainda adolescentes. Os filhos obviamente chamavam-lhes pai e mãe e nós, durante muito tempo os únicos netos seguíamos-lhes o exemplo. Assim a minha mãe nunca teve outro nome que Lola e o meu, quando regressou era o Papá para se distinguir do meu avô. Foi difícil começar a tratar os avós por avô e avó mas meus pais numca tiveram outro tratamento senão o que já indiquei. Só já adulto é que comecei a chamar mãe à minha mãe.

O meu pai terá regressado em 45. Era um perfeito desconhecido quando nos apareceu com a minha mãe que o fora esperar a Lisboa. Conta-se que, nós os dois, agarrados cada um às pernas do avô Manuel, o olhávamos de esguelha, desconfiados e nos negámos a aproximar. Foi preciso (pai e mãe precavidos) desembrulharem umas grandes camionetas de madeira para então nos deixarmos (crianças interesseiras!) beijar e abraçar. Contaram-me isto tantas vezes que já não sei se me lembro de facto ou se construí uma memória falsa deste regresso.

 

O segundo dia 9 de Maio que está gravado na minha vida corresponde ao da 2ª e última ocupação da sede da Associação Académica, durante a crise de 1962.

De facto, quando se fala da crise académica de 1962, há o pouco salutar hábito de a reduzir quase só a Lisboa quando, na verdade, ela teve um eco enorme em Coimbra.

Se a medida da repressão governamental puder servir de barómetro, convirá lembrar que a academia coimbrã sofreu um número de expulsões da universidade superior à de Lisboa mesmo se o número de estudantes da primeira fosse pouco superior a um terço da segunda.

No que toca a prisões, se é verdade que a ocupação da cantina da universidade de Lisboa acompanhando uma greve da fome teve como consequência a prisão de centenas de estudantes, não menos verdade é que essas detenções foram de muito curta duração enquanto que em Coimbra a segunda ocupação da AAC levou à detenção de mais de duzentos estudantes e à prisão em Caxias de quarenta e quatro deles por um período que variou entre dez e trinta dias.

Todavia, a crise ocorreu com mais intensidade em Lisboa. Foi lá que foi proibido o “dia do Estudante” e foi lá que ocorreram os mais longos períodos de greve.

Coimbra, acompanhou, solidarizou-se, teve períodos mais curtos de greve o que se justifica pela dificuldade em que a Associação Académica se encontrou para convencer a Academia a tomar parte numa luta que parecia distante. Mesmo assim, a Queima das Fitas não se realizou, a Associação foi cercada e encerrada, as equipas desportivas entraram em campo nos diferentes campeonatos nacionais que disputavam com equipamentos de “luto académico” e as manifestações que ocorreram nesses eventos foram reprimidas com fortes cargas policiais.

O Governo começou por destituir a Direcção Geral da AAC, levantando processos disciplinares aos seus membros e a polícia cercou as instalações e ocupou-as em Abril tentando assim desorganizar toda e qualquer manifestação de solidariedade com os estudantes lisboetas. A primeira resposta coimbrã consistiu em criar uma comissão eleita de estudantes a que se juntaram alguns professores para não só reabrir a AAC mas também para suspender os processos disciplinares que começavam a cair sobre estudantes de Coimbra.

O processo de negociação com as autoridades ia sendo acompanhado por Assembleias Magnas que, proibidas no recinto do Palácio dos Grilos (sede da AAC) se transferiram para o campo de Santa Cruz no Jardim da Sereia onde treinava a equipa de futebol.

O processo arrastou-se e uma fracção eventualmente mais radical entendeu que os resultados escassos ou nulos do grupo que negociava não satisfaziam. Por isso, no rescaldo de uma última assembleia, cerca de duas centenas de estudantes resolveram reocupara Associação aproveitando a incúria policial. Durou pouco tal tentativa. Algumas horas depois, já de noite, importantes forças de polícia e da Guarda Republicana ocuparam a “Alta” coimbrã, cercaram os Grilos, arrombaram as entradas que tinham sido barricadas e prenderam todos os ocupantes. Estes foram conduzidos para o quartel da Guarda Republicana onde a PIDE levou a cabo uma triagem que resultou no envio para a prisão de Caxias de 44 estudantes (entre eles quatro raparigas).

Foram, como já disse, libertados sem processo que se conheça, como aliás se desconhece quais as razões de cada uma das prisões mesmo se, provavelmente a maioria deles já fosse identificada como simpatizantes da Oposição Democrática, eventualmente do PCP, ou simples “agitadores” que se teriam notabilizado nas reuniões e assembleias realizadas.

Fiz parte desse grupo de presos, uma estreia com que não contava mesmo se me tivesse abundantemente mexido durante o acontecimentos. Todavia, como a grande maioria dos meus companheiros de infortúnio, não tinha qualquer ligação partidária.

Quando acima afirmei que todos os participantes da segunda ocupação foram presos, não fui inteiramente fiel à verdade. Efectivamente, um colega que já na primeira ocupação se tornara notado por barricar todas as portas e janelas com madeiras diversas, estava connosco de novo. Era conhecido por Zé do martelo e durante o primeiro assédio policial pedia do pátio dos Grilos aos que estavam fora do lado da faculdade de Direito “pregos” o que ocasionou uma oferta de sanduiches de bifes coisa que muito o mortificou ao contrário do resto da malta ocupante que estava esganada de fome.

Este Zé do martelo apresentou-se na segunda vez acompanhado do seu indispensável instrumento e voltou a pregar tudo o que podia ser pregado pois que, desta feita, vinha municiado de pregos em abundância., Ao ouvir a polícia derrubar as frágeis barricadas que tinha levantado à entrada, achou que era uma maçada ser preso, trepou para a zona do sótão e escondeu-se com tanto cuidado que não foi encontrado. “Escondi-me nos forrinhos”, disse-me mais tarde, já eu estava de volta da cadeia. Presumo pela palavra “forrinhos” que seria do Norte mas, de facto, perdi-o totalmente de vista. Nem sei sequer se realmente se chamava Zé ou se sou eu já achacado da memórias falsas.

..............

estava eu mergulhados nas efemérides e eis que toca o telefone fixo. Era a minha mãe que tinha decidido recordar-me que, neste mesmo dia 9 de Maio mas de 1955, tínhamos chegado a Lourenço Marques. “Era o dia de anos da tua bisavó”, informou-me para justificar aquela memória férrea que tem. Aproveitei para lhe perguntar a data exacta do regresso do pai que, graças ao facto de ter dois filhos pequenos, não teve de esperar pelo fim da guerra. Regressou mais cedo alguns meses e eu, que tinha uma caminha junto à cama da minha mãe não terei achado graça nenhuma aquele desconhecido que se deitou ao lado dela.

Em 62, apesar de não ser um “progressista”, o meu pai solidarizou-se com os filhos e assim se manteve ao longo dos anos, aguentando angustiado prisões de ambos e o exílio do meu irmão. No dia 25 de Abril disse-me que se sentia feliz. “Feliz e aliviado. O teu irmão já pode voltar e vocês provavelmente não serão presos mais nenhuma vez!”

 

Cuidem-se leitoras e leitores que isto ainda tem muito para andar. O bicho espreita...

É altura de propor a leitura de um autor que escreveu profusamente sobre a 2ª guerra mundial. Trata-se de Anthony Beevor que se tornou o cronista inultrapassável do conflito tendo já escrito uma dezena de livros sobre o tema. Livros extensos mas bem escritos e melhor documentados. Desde uma história geral até histórias sobre determinados momentos (o Dia D, Estalinegrado ou a queda de Berlim, etc...).

* na vinheta: o jovem alferes médico e o filho (este escriba) dias antes de partir mobilizado para os Açores. Praia da Figueira.