estes dias que passam 389
Diário das semanas da peste
Jornada quinquagésima terceira
wop-bop a loo op a-lop boom boom
(um gosto e um desgosto)
mcr, 10 de Maio
Ontem fui ao barbeiro. Como é que um gesto tão simples, tão habitual, me pareceu um regresso do mundo das trevas, do não-mundo, do sono que gera monstros?
Tentei estacionar o carro no parque do hotel com que o barbeiro sr. Teixeira tem um acordo utilíssimo e só depois de cinco bons minutos é que percebi que, estando o hotel fechado, não havia parque para ninguém. De todo o modo, o que não faltava na avenida eram lugares para deixar o carro. De resto, a polícia municipal deve ter afazeres mais importantes e prementes do que andar a ver se, nas ruas desertadas, há carros duvidosamente estacionados. Daí dei um salto ao estofador e regressei melancolicamente a casa. Felizmente chovia pelo que não me senti obrigado a recolher-me contra vontade.
Aliás, a chuva é bem vinda quanto mais não seja porque o país está em seca moderada o que pode indiciar um verão violento na floresta interior, na que resta e que não deve estar a ser especialmente cuidada.
Eu diria, citando o poeta, que já por aí espreita um fogo que arde sem se ver. Por mais optimista que seja, o Verão aparece sob cores ameaçadoras.
Morreu um dos heróis da minha adolescência musical: Little Richard que está razoavelmente representado na minha discoteca, desde dois singles de 45 rpm, até dois LPs e três cds, fora as antologias.
Ontem a televisão mostrou um espectáculo televisivo, claramente gravado em estúdio mas com audiência. Ali estava little Richard com a sua banda toda de negros a tocar para um quarteirão de jovens brancos, branquíssimos que lá se contorciam como podiam e, sobretudo, os deixavam. Era toda uma América dos fifties. Segregação que se pressentia até nisto.
Diz-me o jornal (o Público) de hoje que little Richard tocou para multidões mistas. Talvez mas duvido que fosse nesses anos de inauguração do rock’n’roll ainda antes de aquilo, daquela música contagiante, daquelas letras carregadas de onomatopeias, daquele ritmo que nos pedia mais pés que uma centopeia (não resisti a esta!...) que houvesse muitos lugares, sobretudo grandes salas de concertos onde toda a gente entrasse à balda, tudo misturado sem interdições policiais de toda a ordem.
O mundo “wasp” bem que pressentiu o perigo, bem que ululou contra aquela música dissolvente de pretos, aquele indisfarçado ataque a tudo, à moral sexual vigente, aquele grito por uma nova sexualidade mais livre.
Com Richard e tão importantes quanto ele começaram por aparecer outros músicos negros, Nat King Cole, um genial pianista de jazz passado com armas e bagagens para a música dita ligeira, Chuck Berry mentor de Beatles e de Stones, Fat’s Domino, Bo Didley, Sam Cooke. Foram eles que abriram o caminho a Jerry Lee Lewis, Richtie Valens. Gene Vincent ou Ricky Nelson. E ao Elvis, está bom de ver. Músicos brancos com igual talento que, apesar de tudo, tiveram menos dificuldades mesmo se o olho da polícia e das igrejas estivesse bem aberto e pronto a agir e reagir. Elvis, durante anos, foi filmado só da barriga para cima para esconder um incandescente jogo de ancas que fazia desmaiar as jovens fans brancas. E esses desmaios eram o prenúncio do reino dos infernos, do pecado, de tudo. Sem esta gente carregada de talento, de ideias, de fúria de viver, nada teria sido como foi.
A “revolução cultural” americana começou com os músicos negros, com alguns jovens escritores brancos (a beat generation: Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Corso e Ferlinghetti) e as primeiras tentativas de campanha pelos Direitos Civis. De certa maneira, ela estendeu-se em tempos diferenciados, com maior ou menor profundidade ao chamado mundo ocidental que era liderado pelos Estados Unidos.
Sinto-me, eventualmente, mais tributário deles do que do frémito político provocado pela campanha Delgado. E os anos sessenta, a década dourada, só acentuaram esse sentimento, mesmo quando participava entusiasticamente nas lutas politico estudantis, na recusa do colonialismo e na denúncia dos horrores do “socialismo real”, russo, checo, húngaro ou chinês (a última – e pior – ilusão).
Dito desta maneira, isto parece de um simplismo redutor mas, de facto, tudo isto, e muitos outros sentimentos, acontecimentos e sensações concorriam ao mesmo tempo. O mundo estreitara-se, a “mundialização” estava em marcha, os media, o cinema, o jornalismo e a televisão traziam-nos a casa em menos de um dia novidades que dez anos antes tardariam anos ou nunca seriam realmente conhecidas. Assistiu-se, em directo, à guerra da Argélia, mais ainda à do Vietnam. Aos assassinatos de Kennedy, de Luther King como mais tarde às barricadas de Paris, de Berlin ou de Roma. Só as ditaduras tentavam, com cada vez maior dificuldade, travar a onde de notícias, de atitudes. Por exemplo: Portugal e Espanha, dois covis de beatério e moralidade ultramontana, não resistiram aos biquínis que as turistas estrangeiras exibiam nas praias. Os virtuosos fatos de banho das portuguesas com o seu pequeno saiote, os fatos de banho dos cavalheiros que incluíam peitilho, desapareceram num ápice assim que as praias da península foram descobertas pelos turistas de além Pirenéus.
Fait-divers ainda mais extraordinário que li num jornal do Porto, em 1960. Num café do Largo do Padrão, uma mulher atreveu-se a acender um cigarro. Foi expulsa do estabelecimento apesar de acompanhada pelo marido! Era assim o país, mas em pouco tempo a coisa teve de mudar. No meu tempo de faculdade, logo num dos primeiros anos, uma aluna de Letras entrou no edifício de calças. Acorreu, em poucos momentos, o próprio director da Faculdade aos berros, destemperado. A rapariga olhou-o condescendente e só perguntou se ele exigia que ela tirasse as calças ali mesmo. Não recordo como a história acabou mas o pateta catedrático não caiu fulminado por uma sofeca por mero milagre. Dois anos depois, havia mais raparigas de jeans do que de saias...
“Jesus, para onde a morte de little Richard leva o cronista?”, dirá, com algum acerto uma leitora mais céptica. E dirá bem, claro, que isto sou eu a patinar sobre gelo fino ou a surfar uma onda manhosa. Richard era um homem de Deus, ordenado, e muito religioso. Porém, diante de um piano, a fé vacilava, a luz dos projectores cegavam-no e ele cantava
good golly, miss Molly sure like to ball
When you’re rokin and rollin’
can’t hear your momma cal.
Experimentem ouvir e depois digam-me.
Leitores, cuidem-se. De resto, neste dia de sol, há uma barreira policial nas ruas de Montevideu e do Brasil, mesmo em frente ao mar e às pequenas nesgas de areia que, num dia destes iriam estar apinhadas de gente à procura do sol. A polícia protege-vos de vocês mesmos, incuráveis insurrectos que não sabem proteger-se dos miasmas. Vela, insone, como nos versos do esquecido Tomás Ribeiro
Dormes, eu velo sedutora imagem
Grata miragem que no ermo vi
Dorme –impossível que encontrei na vida
Dorme querida que eu descanto aqui.
(esta quadra encontrei-a numa gramática para exemplificar uma certa espécie de rima de que já não sei o nome. Fixei-a num segundo como fixo tudo o que não é importante incluindo passear vagarosamente ao sol do fim da manhã e ao som perto do marulhar das ondas. Vê-se que estou velho e não aprendo...
o livro do dia: “pela estrada fora (o rolo original)” de Jack Kerouac, Relógio de Água. Um grande livro publicado por uma belíssima editora.
0 disco? Qualquer antologia dos fifties, Basta procurar na internet e aparecem autênticas caixas cheias de discos e canções. Não vale a pena escolher muito, São baratas e trazem todas os grandes êxitos dessa época.
* a vinheta, a condizer: imagens do “bestiaire fantastique des voyageurs”, sous la direction de Dominique Lanni, Arthaud Fammarion, 2014