estes dias que passam 390
Diário das semanas da peste
Jornada quinquagésima quarta
Pôr a conversa em dia
mcr,11 de Maio
maus começos
Enjoei como uma pescada desde pequeno. De carro, de barco, um pequeno barco que nos levava para a margem direita do rio, para a praia do Cabedelo. Aí, para além de um mar cheio de ondas magníficas, havia um palheiro, isto é uma casa de madeira cujo rés de chão abrigava barcos. Para o andar subia-se por uma escada rudimentar, dois paus longos com travessas de madeira, uma aventura. Era a “casa sem escadas”.
Os meus pais e mais vários amigos todos jovens casais, iam até lá passar o fim de semana, coma a garotada a tiracolo lancheiras enormes cheias de coisas boas. Dormia-se a monte, se bem me lembro. A viagem era uma tortura. Na foz o rio era largo e eu vomitava tudo o que tinha e não tinha dentro. Passei a ir de carro, o carro do dr. Rodrigo Santiago que levava as provisões. A viagem muito menos demorada era outra provação. E outros vómitos. Até as caleches turísticas puxadas a cavalos as “jardineiras”, me agoniavam só de as ver. E por aí fora...
Quando fomos para África, ninguém imagina o meu penar. De dia ainda me aguentava graças aos convés largos do paquete “Pátria”. Mas dormir à noite no enorme camarote, era um castigo. Ir daí para a sala de almoços nem pensar.
Às tantas, descobrimos, o tempo estava bom que o convés era um bom sítio para dormir. E assim fiz. Com isso ganhei um inesperado prémio: ver logo pela manhãzinha a chegada aos diferentes portos. Uma maravilha! S Tomé, Luanda, Lobito, Moçâmedes, O Cabo e, finalmente, Lourenço Marques. Era um espectáculo fabuloso para um rapazola de treze anos, incapaz de aguentar um golpe de mar.
Em África, nos passeios de carro, eu ia previdentemente à frente, a cabeça fora da janela e as agonias de sempre. Então no Norte, quando saíamos de Nampula para visitar amigos dos meus pais que viviam a dezenas de quilómetros (Morrupula, Nametil, Meconta,sei lá que mais...) o desastre repetia-se.
Quando fiz o exame do quinto ano, pôs-se a questão de me enviarem para a “metrópole”. De avião. Por mim eu teria desistido de tudo, nem que fosse ir para marçano. Dois inteiros dias de avião eram o anúncio de um naufrágio absoluto.
Embarquei, aterrado e com não sei quantos comprimidos no bucho, num “fokker” da DETA, a linha aérea interior de Moçambique. Faria escala em Quelimane e aguardaria por embarque na Beira, na TAP e num “super-constelation” que escalaria Luanda e Kano (Nigéria) até chegar a Lisboa.
Surpresa absoluta: a primeira etapa cumpriu-se gloriosamente. Em Quelimane, fresco como uma alface, aviei uma dose gigantesca de caril de caranguejo, a melhor da minha vida.
Dali até à Beira, foi outro passeio. Ainda por cima viajava-se a uma altitude que nos permitia ver tudo lá em baixo. Eu não acreditava em mim próprio. Todo o resto da viajem correu sob o mesmo signo resplandecente de felicidade, ausência total de enjoo, um apetite devorador.
Jurei a mim próprio que nunca mais usaria outro meio de transporte. Por várias vezes fui de férias a Moçambique e sempre se repetiu esse excelso milagre. Em terra, os autocarros ainda me faziam sentir mal, os carros também. Durante algum tempo, pensei que tudo se devia à TAP, à TAP ronceira, sempre fora do horário (daí chamarmos-lhe “Transportes Atrasados Permanentemente”), mas segura e afinal eficaz.
Quando comecei a viajar para a estranja, logo que tive folga financeira, deixei o comboio e preferi o avião, mais caro mas muito mais rápido. E sempre na TAP. E sempre com pequenos atrasos.
Entre Lisboa e Porto, durante alguns anos, usei o avião. Não era eu que o pagava mas os meus superiores entendiam que ir pela matina e voltar no último avião era o mais conveniente.
Com os anos, fui-me apercebendo que a TAP, que nunca tinha desastres!, era financeiramente um desastre. Que eu saiba nunca tivera lucros alguns mas sempre deficits, pagos pelo erário público. Quando se perderam as colónias, a coisa foi ainda para pior. As ilhas davam um claro prejuízo e nas poucas rotas em que operava ou havia aviões melhores, na concorrência, ou mais baratos ou em maior quantidade e melhores horários.
Esta era a realidade. Quando se debateu a privatização eu achava que ninguém pegaria na empresa. Nem sequer tomei partido, tão seguro estava que para prejuízos certos não havia concorrentes. E, na verdade, o processo andou aos trancos e solavancos até aparecer este grupo de investidores.
Em boa verdade, os prejuízos continuaram mas havia a ideia de que isso se devia à compra de novos aviões, à desmesura do aumento de rotas e ao fardo de ser obrigatória a continuação de operações em zonas da diáspora portuguesa. Com o actual Governo, entenderam alguns génios tomar uma forte participação na TAP mesmo sem isso se reflectir na direcção da empresa. Agora, é o que se vê: a TAP, a tal coisa estratégica e fundamental para os interesses pátrios, mete água por todos os lados. A crise apenas fez aparecer o desastre com mais nitidez.
Eu, francamente, não sei se um pequeno país precisa mesmo de uma companhia de bandeira. Outros maiores e mais ricos já desistiram dessa ideia. A Suíça, por exemplo que abandonou a poderosíssima Suissair. Ou juntaram trapinhos com concorrentes, casos da Espanha da França e da Holanda.
Por cá, ouvem-se os habituais rugidos de rato. Há mesmo um senhor ministro que fala alto, muito alto e em tom grosso, ameaçador. Quererá mesmo controlar a empresa para lá meter o cacau que ela pede? Pretenderá nacionalizar a empresa? Será que nacionalizada, como quase sempre esteve, ela sairá excepcionalmente, miraculosamente, do prejuízo em que sempre viveu?
Eu não conheço os actuais donos de metade da TAP, um tal Neeleman e outro Barraqueiro. Não conheço, nem me apetece conhecer, fique claro. Apenas pretendo não ter de, a exemplo dos bancos que ninguém deixa falir, continuar a pagar as contas caladas que eles vão custando. E custarão, podem estar certos disso...
Nos últimos quinze anos, não recorri à TAP senão quando me permitia melhores horários. A razão é simples: a TAP era sempre mais cara do que a concorrência. E nem sequer falo de voos low-cost pois raras vezes abdico de poder viajar mais comodamente, com mais quilos, sobretudo no regresso (a livralhada, os discos, etc...). Ser patrioteiro, como pede o senhor António Pedro Vasconcelos, fica caro.
Ser português é caro, mesmo sem a TAP. É que, ao contrário do que apregoava um patusco, “as pernas dos capitalistas alemães” não ficam “a tremer” com os nossos patrióticos arreganhos e menos ainda com as eventuais ameaças de não pagar o que devemos e que, de chapéu na mão andámos a pedir por favor, por muito favor...
Ou o Estado e S.ª Ex.ª o exaltado Ministro tem um plano para tornar a TAP competitiva e, já não digo lucrativa, mas pelo menos não fonte de prejuízo, ou então que se deixem de alanzoar bravatas que depois acabam no ridículo.
Será pedir muito?
Segundo: faltam oito dias para permitir a abertura de restaurantes, cafés & similares. Foram oito dias que poderiam ter sido mais produtivos caso se tivesse permitido a abertura das esplanadas onde é fácil, facílimo, organizar o “distanciamento social” e ganhar assim mais uns tostões.
Terceiro: Multiplicam-se as declarações responsáveis sobre o efeito dramático, nefasto e inconstitucional do isolamento de “idosos”, ou seja de velhos à viva força. Nada prova que este grupo etário (que pelos vistos agora começa aos 65 anos) seja tão terrivelmente perigoso. Sobretudo quando 40% das mortes tiveram lugar em lares onde as pobres pessoas para lá atiradas deveriam estar protegidas.
Pior: com o regresso de muitos pais à actividade fora de casa, com quem querem deixar as crianças? As que não podem ter creche, por ser esta cara ou simplesmente por falta de lugar para todos os candidatos?
O desemprego devastador que aí vem, que já se cheira e já se sente, vai de novo mobilizar pais e avós reformados para ajudar os filhos subitamente sem trabalho. A velhada é boa para acudir a estas situações mas já não presta para poder eventualmente viver e morrer perto dos seus?
Não andarão por aí matilhas e matilhas de deputados Ventura assanhadas contra quaisquer cabelos brancos no horizonte e dispostas a enjaular tudo o que lhes cheire a “idoso”, palavra agora muito usada na nov-língua politicamente correcta para diminuir ainda mais os que não levaram o seu brio patriótico a deixar-se morrer docemente no dia fatídico em que fizeram sessenta e cinco anos? A deixar o lugar, a casa, as magras poupanças para os mais novos e mais necessitados e eventualmente mais saudáveis?
Ah velharia ingrata e irresponsável!
Não deixa de ser irónico estarmos a falar disto nos dias que celebram o fim da 2ª Grande Guerra cujo principal líder se chamava Winston Churchill e que perfez 65 anos justamente em 1939.
Com ele estava outro extraordinário político que vinte anos mais tarde com setenta anos foi eleito presidente da república francesa e transformou radicalmente esse país e, de certo modo, a Europa.
Finalmente, foi aos sessenta e cinco anos que Mário Soares foi eleito pela primeira vez Presidente da República, prova provada da inconsciência dos portugueses que não perceberam quanto estavam a perder elegendo um homem definitivamente ultrapassado pela idade e pela nova realidade. ...
Razão teve Heminguay que, ao ver passados os sessenta anos, se suicidou. Ele lá sabia porquê.
* a vinheta: “Fête nautique”, collage, Jacques Prévert
**um amabiíssimo leitor (Joaquim S R) mandou-me um comentário a que respondi prontamente como é meu hábito. Não sei se será legível nesta estranhíssima arquitectura actual do blog. De todo o modo, um abraço
mcr (que escreve neste espaço à boleia do seu compadre d'Oliveira)