estes dias que passam 391
Diário das semanas da peste
Jornada quinquagésima quinta
O marxismo “cultural”
mcr, 12 de Maio
Eu nem queria estar de novo na trincheira desta enésima guerra do alecrim e da manjerona. É que, juntamente com alguns argumentos interessantes, há a forte tentaçãoo de cair no simplismo mais primário e aberrante. Nada tenho contra o sr Nuno Melo ou a favor do sr Rui Tavares.
Para já o que me espanta é a cegueira do primeiro que ainda não percebeu que as parcas palavras do segundo sobre a Exposição do Mundo Português poderiam dar lugar a vários debates mas nunca a esta indignação virtuosa e patriótica e consequente defesa do passado do “nobre povo, nação valente” (e notem que “A Portuguesa” é um dos achados do republicanismo mais ardente e de uma ideia de Império toda enrolada no “mapa cor de rosa”. O patriótico versejador do hino não manda ninguém marchar contra os canhões mas sim contra os “bretões”, ou seja contra a bifalhada que, aliás com farta razão, não aceitava as pretensões lusitanas a territórios que nunca controlara e não tinha a mínima possibilidade de controlar.
Em boa verdade, na época do “Ultimatum” Portugal limitava-se a deter algumas regiões costeiras de Angola e outras tantas de Moçambique. O resto era mato, sertão, onde os “sertanejos” comerciavam com os chefes negros muito pouco dados a considerar Portugal, o “Muene Puto” como suserano.
Deixemos, porém, o exercício da História e passemos a teoria do marxismo cultural, doença que, sicut Nuno, atormenta os escritos de Tavares. Nuno, o do nome ilustre, parece não saber que Tavares historiador não é exactamente a mesma coisa que Tavares o fundador daquela coisa obnóxia chamada “LIVRE” e que graças a uma senhora deputada deve ter deixado para sempre de se sentar no parlamento.
E também, pelos vistos, nunca leu as três páginas semanais que Tavares (Rui) escreve no Público que, por muito que Melo queira. não é o “Avante” (no pressuposto, a provar, de que este seja marxista e cultural) nem a “Iskra” do senhor Ulianov que, no século, ficou conhecido como Lenin.
Tivesse ele lido e perceberia que Tavares é apenas anarco/tavarista ou seja herdeiro de uma corrente, o anarquismo, mais multifacetada que daquelas bolas de sala de espectáculos, e ferozmente adversa do dito cujo marxismo que hoje, infelizmente, e mal, se confunde com um aberrante marxismo-leninismo ou, pior ainda com o mesmo m-l stalinismo ou, desastre total, com o m-l-maoísmo.
Ninguém quer obrigar o senhor Melo, seguramente bom rapaz e inteligente, a meter-se agora a estudar os meandros do esquerdismo, coisa mais confusa do que o delta do Mississipi. Pobre dele! E que seca!
Quando qualifico o sr Tavares (Rui) de anarco-tavarista quero apenas significar sem qualquer desprimor para ele que o seu anarquismo é mais um, mais algo diferente que pressupõe a milagrosa receita da união das Esquerdas seja ela qual for para enfrentar não se sabe bem o quê desde que a Direita aparece agora diversa e poco susceptível de se unir num programa comum.
Eu não vou agora dizer que Tavares (Rui) é mais outro ingénuo inocente que desconhece que a unidade entre a panela de ferro, a de barro e as outras panelinhas de diferentes materiais dá sempre “barraca”. As “frentes populares” que a História nos deixou nunca o foram exactamente pois houve sempre uma tendência que ou tentou controlá-las ou, se viu gorado o seu intento, rapidamente tentou aniquilar os esforços de um punhado de “inocentes úteis” que aparecem sempre nestas ocasiões e que servem também sempre de carne de canhão, acabando desiludidos ou rancorosos (e neste caso) transferindo-se em massa para a Direita. Veja-se o que se passou nas famosas regiões comunistas francesas ou como parte do eleitorado de cavalheiro anti-cigano vem de outras áreas de antiga votação comunista.
Melo só acerta numa pequena coisa: a Esquerda reage mais vezes colectivamente do que a Direita. Mas nem sempre. E como um outro Tavares (José Miguel), também detentor da última página do Público, três vezes por semana, nem sempre a multidão se junta por mero sentimento ideológico. É que, nesta troca de argumentos há factos brandidos que não tem nada que ver com a realidade. São opiniões, visões distorcidas, desejos inconfessados e, sobretudo, muita ignoranciazinha histórica, muita tentativa de ver o passado com os óculos do presente.
E chega de guerra absurda. É tempo de ir pesquisar o que é isso de marxismo cultural. As palavras cultura e cultural são uma espécie de mezinha com que se tempera toda e qualquer realidade. A televisão é cultural, “O Tesouro das Cozinheiras” é cultural, um grupo folclórico fundado à pressa e à pressão (por exemplo um “rancho folclórico do Porto!!!) é cultura, o concurso de cantigas da eurovisão é cultural até cair para o lado, e por aí fora.
Às vezes, pergunto-me se haverá algo que não seja directa ou indirectamente cultural tantas são as criaturas que se chegam à frente de mão estendida para beneficiar do selo “cultura” e receber do “paganini” costumeiro a habitual esmola.
No capítulo do marxismo, durante largo tempo (entenda-se a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do XX), o campo cultural não estava no cento da política da Internacional. É verdade que um dos pais do socialismo russo, Plekanov, deixou um importante texto, “ A Arte e a Vida Social” (1912) que serviu de guia a todos os estudiosos e era, ainda em meu tempo de universitário e ávido consumidor de textos “marxistas”, um dos livros essenciais de formação do jovem revolucionário. Na mesma época, Lenin daria ao prelo o volumoso “Materialismo e “Empiro-criticismo” (confesso que o abandonei ainda não ia a meio) enquanto ligeiramente mais tarde, Luckaks escreveria “História e Consciência de Classe”. Este último autor, provavelmente o mais interessante, dedicou muito do seu tempo às questões culturais e deixou vasta obra, nem sempre brilhante, muitas vezes vesga (a condenação de Flaubert), e continuadamente visada e censurada pelo estalinismo dominante a partir dos anos 30.
Os próprios founding fathers Marx Engels deixaram pequenas anotações no meio da imensa produção articulista sobre uma que outra questão cultural. É famosa a atribuição a Balzac da verdadeira condição de escritor realista em contraposição com outros escritores muito mais progressistas (ou menos reaccionários) do que ele.
Provavelmente, o marxismo sofreu dois temíveis golpes. Por um lado, apesar do crescimento exponencial da 2ª Internacional e dos partidos socialistas nela integrados houve uma altura que o impasse ocorreu. A guerra destruiu a grande ideia de fraternidade operária de que Jaurés terá sido o último grande profeta. De resto, o socialismo político não sabia nem podia lidar com o exacerbado imperialismo que caracterizou a grande aventura colonial alemã, francesa, belga, inglesa ou até portuguesa. Os povos coloniais ainda não existiam como tais. dentro dos quadros do pensamento ocidental Não há uma questão colonial antes da guerra.
Depois, durante a guerra, ninguém duvida de que os únicos adversários dela foram os socialistas radicais e um punhado de anarquistas. Os grandes líderes socialistas adoptaram sem vacilar o social patriotismo e deixaram ir para as trincheiras os trabalhadores desmunidos de tudo e, sobretudo, de uma visão crítica do que, na verdade, estava em jogo. A grande vitória de Lenin e do seu pequeno grupo residiu na condenação sem apelo nem agravo do conflito, na exigência de paz, na proposta de uma revolução (mesmo se ainda não estava na mesa qualquer espécie de golpe de Outubro).
Uma vez instalados no poder, os bolchevistas não só trataram de eliminar toda a concorrência, desde os kadets até aos socialistas revolucionários, decapitaram os sindicatos, domesticaram os soviets, aceitaram um tratado de paz leonino com a Alemanha e levaram a cabo uma guerra civil vitoriosa contra não só os “brancos”, mas ainda contra forças oriundas das diferentes nacionalidades (Makno por exemplo) e contra a intervenção reticente mas intervenção dos “aliados”. Contra todas as espectativas, contra toda a teoria que explicitava claramente que a “Revolução só poderia ocorrer num pais com um proletariado culto e organizado, industrialmente desenvolvido, duas características que de nenhum modo se verificavam no império russo.
De todo o modo, a “revolução de outubro” foi num primeiro tempo, um sinal de alvoroço para todas as vanguardas artísticas e intelectuais de Moscovo e Petrogrado (que ainda se não chamava Leningrado). O cinema, a música, a pintura e a literatura explodiram e deram à jovem união de repúblicas um extraordinário, riquíssimo, diversíssimo panorama cultural. De tal modo que me atrevo a pensar que ainda não está completada a história cultural desses anos febris e admiráveis que, entretanto, desapareceram rapidamente, mesmo antes de Stalin consolidar o seu poder. O suicídio de Maiakovski (1930) (se é que não foi suicidado) é um dos sinais do que viria a suceder a toda a vanguarda. Claro que houve casos claramente mais dramáticos como a morte “por frio” de Oleg Mandelstam, o desaparecimento de Lunatcharsky (fundador do Proletkult), de resto, já em desgraça e afastado das principais decisões políticas, a morte de Blok (de doença mas impedido de sair para se tratar no estrangeiro), o silenciamento de toda uma plêiade de poetas ( Marina Tsevietaieva,que se suicidou pobre, sem poder publicar, em 1940, Ana Akmatova que não pode publicar entre 1925 e 1952, Boris Pasternak alvo de censura e obrigado mais tarde a rejeitar o prémio Nobel) para não falar numa multidão de artistas plásticos que ou se viram obrigados a parar (Rodechenko) ou sofreram sucessivas pressões (Lissitski) e acusações de subjectivismo (Malevitch). A partir de 1930 a pintura russa é de uma pobreza gritante. Os comissários para a cultura trataram de emascular aquele enorme frémito revolucionário que por momentos tornou Moscovo uma rival de Berlin ou Paris.
A literatura russa e mais tarde a de muitos escritores comunistas, foi naufragando entre “E o aço foi temperado” de Ostrovski e duas aberrações absolutas (“Os subterrâneos da liberdade” de Jorge Amado e “Les communistes” de Aragon).
Note-se que nenhum autor escapou, por exemplo, à obrigação de escrever sobre Stalin (por todos Neruda, coitado) nem nenhum pintor ficou isento de homenagear o georgiano (ficou famoso o retrato de Stalin por Picasso e a polémica que suscitou).
Portanto, mesmo ao referir o “marxismo cultural”, Melo, se tivesse tido o cuidado de se informar, saberia que tal coisa a existir foi mais como caricatura e seguidismo acéfalo. Mesmo quando a teoria serviu para atacar a “arte pela arte” e deu origens a polémicas furiosas em que o que estava em causa não era tanto a qualidade da obra mas sobretudo a orientação política do seu autor.
À cega e irracional censura do poder juntou-se estoutra menos eficaz, é certo mas igualmente perigosa. Isto para já não referir o derrubar de estátuas consagradas quando o homenageado, subitamente, saía do caminho. O caso mais flagrante foi o de Gide, depois do seu famoso “Retour de l’URSS”. Vale a pena sublinhar que Gide já fora vítima de ataques de natureza contrária por ter escrito o “Retour du Congo” uma denúncia corajosa da colonização.
Note-se que a batalha cultural ou, melhor, a censura durou todo o tempo da União Soviética. Para não citar outros, bastam os nomes de dois prémios Nobel: Alexandre Soljenitsin e Joseph Brodsky, obrigados ambos a exilar-se.
E sorte tiveram. Até 1950 o resultado mais provável seria o desaparecimento físico ou o gulag onde também se desaparecia com enorme facilidade.
Sei que, outros regimes, de sinal contrário causaram enormes estragos na cultura local e mundial. Basta lembrar a gigantesca lista nazi de livros proibidos, a infame exposição de “arte degenerada”, a perseguição desenfreada a escritores, músicos ou artistas plásticos ou cineastas.
Finalmente, Melo deveria saber que durante quarenta anos, a cultura portuguesa foi alvo de um controlo que o alegado marxismo cultural em voga não consegue igualar por lhe faltarem meios de coação eficazes.
Fiquemo-nos por aqui. O nazismo nunca foi cultural e o marxismo quando eventualmente pretendeu sê-lo teve resultados desoladores. Marx não merecia isso.
Na vinheta: Kazimir Malevittch, temível “subjectivista e notório contra-revolucionário.