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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 410 (adenda)

d'oliveira, 01.06.20

PARA MORRER ATÉ O VERÃO SERVE

Meu caro Zé

Durante anos trocámos, com alguma desigualdade, há que dizê-lo, um bom par de cartas. Regra geral eu dava-te notícias da pátria madrasta e encomendava-te de Paris livros e discos e tu, quase telegráfico, pedias mais novidades, se possível temperadas a fel de 1ª, e davas conta do cumprimento da encomenda. Um par de vezes aconteceu saíres-te da frágil casca e mandaste um que outro texto sobre o qual solicitavas rigoroso sigilo que sempre cumpri ( e cumprirei, está descansado). Escrevo-te, hoje, pela última vez, sabendo já que não responderás sequer em duas linhas.

Há duas horas, sob um sol inclemente, enterravam-te em Stª Marinha. Apesar do Verão e das férias estava(mos) lá a maioria dos teus amigos. Alguns notoriamente vindos à pressa da praia e de longe onde a notícia no jornal os apanhou, de supetão mas não de surpresa, que a tua morte estava anunciada desde há meses. Por isso, em quase todos, se adivinhava uma dor serena, quase resignada como se não fosse - como às vezes parece que não é - bizarro morrer aos quarenta e três.

Parece-me, velho companheiro, que alguém tem de avisar a malta que estoirar, assim e nessa idade, é um escândalo senão for um sacrilégio. Sobretudo quando, como no teu caso, nos era lícito esperar que continuasses, luminoso e fraterno, a limpa caminhada que tinhas começado.

Os teus amigos, Zé, estavam tristes e desamparados como se o peso do sol junto ao da morte lhes fosse insuportável. E depois o Verão! O Verão, o "endless summer" da canção o verão que " é uma boa altura para lutar nas ruas"!!! Todavia, e felizmente, ninguém se apressou a dizer as habituais banalidades de uso neste tipo de jornadas e, mormente, "são os melhores que se vão". A morte democraticamente leva melhores e piores na mesma molhada e até à data não deixou por cá ninguém. No grupo que acompanhava a tua gente todos sabiam isso pelo que houve forte economia de frases feitas, coisa que decerto te agradaria saber.

Alguém próximo de mim (e de ti, pelos vistos) deixou cair que, em vez da missa, melhor fora que se cantasse "Sweets for my sweet". Será para um destes dias entre dois copos quando, com olhos secos, pudermos citar-te a propósito dos despropósitos dos nossos políticos. E terá que ser depressa que eles não se vedam: o verão e a proximidade das eleições puseram-nos eufóricos e a debitar inanidades com mais rapidez do que um moinho de orações tibetano. Apanharam-te ausente, foi o que foi. E de notícias do jardim à beira mar plantado estamos aviados. Alguém por cima do meu ombro espreita este pobre bilhete e reprova-lhe o tom desenfastiado. Valerá a pena dizer-lhe que com a tua morte somos nós todos que morremos também um pouco?

Até logo

Agosto de 95

 

este texto acabou publicado num livrinho " A pedra no sapato, a pata na poça", aparecido em 1998. Três amigos que tinham lido partes dele, a saber o Zé, o Pedro Sá Carneiro e o Fernando Assis Pacheco, desapareceram no mesmo ano, medonho, de 1995