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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 411

d'oliveira, 02.06.20

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Os dias da peste

Jornada septuagésima sexta

Sondagens...

mcr, 2 de Junho

 

A televisão anuncia-me que uma sondagem dá ao PS 45%, ou seja quase uma maioria absoluta. Costa ainda aparece mais bem cotado. Marcelo, esse bate todos os recordes.

Devo dizer, correndo o risco de parecer um oposicionista frustrado, que muito me surpreenderia com sondagens menos boas. Este governo teve, na televisão e nos outros media, uma presença avassaladora. Diria mesmo, uma presença excessiva. As circunstâncias ajudaram mas a falta de imaginação dos jornalistas responsáveis pelos noticiários ajudou ainda mais. Ainda não percebi como é possível ter noticiários de uma inteira hora várias vezes ao dia. Obviamente, apanhamos com repetições sucessivas.

Eu tenho o mau hábito de ver os noticiários estrangeiros, franceses, espanhóis, italianos, em inglês e, até, em alemão. Quase todos se ficam pelos trinta minutos ou ainda menos. Quase todos poupam os políticos ou, por outras palavras, limitam a presença destes ao mínimo vital.

A oposição, de Esquerda ou de Direita, tem direito a fazer uma perninha, claro para se poder, com algum descaramento, afirmar que aquilo é tudo muito pluralista, democrático até dizer basta.

Fora isto, aparecem uns populares que, interrogados à queima roupa pelos jornalistas, completam o quadro babados de alegria (Mãe, estou na tv!) e deixando uns narizes de cera quando não mostrando alguma ignorância atrapalhada.

Hoje, pelos vistos, uma percentagem de eleitores do PS quer Marcello para um novo mandato. Ninguém me diz quantos, porque razões, nem quando foram interrogados.

O que estranho é não ver dito ou escrito que também uma percentagem de simpatizantes do PPD quer a mesmíssima criatura em Belém. Que diabo, o homem é dessa área, desde sempre. Seria estranhíssimo (ou nem tanto...) que os conservadores ou o centro direita quisessem outra pessoa. De resto, à Direita não se vislumbram candidatos entusiasmados.

Será que o país, a meio gás de desconfinamento, permanece anestesiado?

Fique claro que não faço parte daqueles, pelos vistos poucos ou mudos, que fazem uma crítica impiedosa à acção do Governo durante os últimos meses. Mas também não embandeiro em arco com o coro de louvores externos e internos com que se saudou a situação portuguesa entre Março e Junho. De facto, houve tempo (nem sempre tão bem aproveitado como poderia ter sido para ter uma ideia do que aí vinha) para atalhar os maiores problemas e prevenir situações difíceis de que havia já claros exemplos na Europa (Espanha e Itália). As fronteiras podiam ter fechado mais cedo, o controlo de entradas de estrangeiros e de portugueses regressados de fora poderia ter sido feito. A aquisição de meios de defesa foi tardia, atabalhoada e cara. Algumas medidas foram impostas mais pela pressão da opinião pública do que por decisão do Governo e a tão exaltada reacção do Serviço Nacional de Saúde foi o que foi porque se abandonaram todas as outras tarefas, todas as outras doenças e se desviaram todos os recursos para este combate. Dezenas (ou talvez centenas) de milhares de actos médicos foram adiados, não se vê meio de recuperar boa parte deles, o saldo de mortes por outras doenças vai aumentar. Isto que vem de ser dito resulta das últimas grandes entrevistas a administradores hospitalares e de peritos em aude pública.

Com a habitual fanfarronice, descobriram-se em cada canto “heróis” mesmo se em muitos casos a acção desses “combatentes” fosse a normal e a exigível.

Os heróis são por definição raros, muito raros e a menção aplica-se a pessoas que ultrapassaram em muito o seu dever, o seu trabalho, o seu sacrifício.

Quando se fizer a história deste período, verificar-se-á que para além das primeira, segunda e terceira linhas de “combate” estava uma comunidade quase inteira de cidadãos que, uma vez sem exemplo, foi disciplinada (por concordância, por medo, por intuição, por egoísmo – e porque não?- por solidariedade) e seguiu sensata e rapidamente as instrucções que foram surgindo.

E neste capítulo, não se discerne uma linha única e clara. É verdade que sobre este vírus nada se sabia, ou muito pouco. É verdade que a Organização Mundial de Saúde foi errática (coisa que, de certo modo se compreende). É verdade que na origem do surto não houve a noção de tudo dizer, logo. O próprio médico que primeiro falou na epidemia, expôs-se a censuras que as houve e nada meigas e acabou por morrer, provando assim que nem todos os cuidados foram mobilizados imediatamente. A China demorou, por razões políticas e de prestígio demasiado tempo a informar o mundo.

Neste capítulo, é bom lembrar que nos primeiros tempos, Trump se desfez em elogios à rival. Claro que depois, dementado como é, propalou o que parece ser uma inventona absoluta, de resto muito própria do seu inimitável estilo que se alimenta de narcisismo, ignorância enciclopédica recurso a mentiras e a injúrias destemperadas.

Também, não fica mal lembrar que, na Europa, há vários países que tiveram mais êxito do que Portugal, tomaram medidas mais atempadas e foram também exemplos de solidariedade, disciplina e rigor populares.

Finalmente, é bom que se não esqueça que a oposição ao Governo foi quase exemplar. Eu, que não gosto de Rui Rio, que nunca votei nele seja para que cargo fosse, que seguramente não corro o risco de lhe dar o meu voto, tenho que dar a mão à palmatória. O homem enfrentou o seu próprio partido ao assegurar que não recorreria a chicana política nestas circunstâncias. Assegurou a Costa uma tranquilidade em que os seus dois parceiros de geringonça foram, no mínimo, forretas. E de vistas estreitas...

É por isso que as sondagens, com tudo o que têm de volátil são tão cor de rosa. E premeiam, no caso do Presidente da República, uma atitude claramente populista (que vem de longe, aliás) e ziguezagueante. Lembremos o modo como a CGTP o fintou (se é que ele, inocente, não previu aquilo) e como o PCP vai fazer a sua festa. Pouco ou nada o impede, se é que li bem as últimas disposições sobre a matéria e a claa alusão à excepção mascarada de “actividade política”. A festa do Avante nunca foi mais do que uma recolha gigantesca de fundos, com uns salpicos de discurso, muita propaganda e nenhuma interferência fiscal.

A complacência das “autoridades” com isto deve-se ao facto de, mesmo fragilizado eleitoralmente, o PCP ser perito na rua e em acções de rua. Todos os outros partidos juntos são incapazes de pôr na rua com eficácia e rapidez o mesmo número de manifestantes que o PC consegue convocar.

Nem Marcelo, nem Costa estão interessados, no actual estádio do campeonato, em “comprar” uma guerra com os comunistas. Tanto mais que, mesmo com os eventuais dinheiros da Europa, a crise vai ser dura, longa e de resultados imprevisíveis. Os turistas vão demorar a voltar pelo menos nas impressionantes quantidades anteriores. A exportação que corria tão bem (porque, é bom que o recordemos vinha já crescendo nos últimos dez anos e sendo preparada nos últimos quinze, que isto de vender num mercado concorrencial não é milagre de nenhum Centeno, de nenhum Costa de nenhuma geringonça) sente dificuldades surpreendentes com a questão dos seguros (são os jornais desta semana que insistem na tecla) e da negociação destes com o Estado.

E depois, depois, mas daqui a um/dois meses temos o Verão e o fogo. A seca em que o país está mergulhado exige cuidados fortíssimos, uma mobilização que está atrasada e, sem pretender ser pessimista, duma coisa estou certo: O optimismo, nesta matéria é inconsciência pura.

Na semana passada os meteorologistas (incluindo os habituais amadores) previam dias de chuva desde domingo. Ora aí está uma sondagem ousada.

 

Hoje, o livro proposto é mesmo para poucos leitores. “Apresentação do rosto” de Herberto Hélder. Pelos vistos, é a primeira vez que é reeditado. Fui compulsar o meu exemplar (Ulisseia, 1968) e verifico que a reedição demorou 50 anos , um pouco mais. Não é o melhor Hélder, nada disso, mas é um “Hélder”, o mesmo é dizer de leitura obrigatória.

* a vinheta: “A Legenda Áurea” de Tiago Voragine (Civilização editora, 2000). Esta edição, que eventualmente ainda anda pelas livrarias, segue a edição de Dianne de Selliers, uma editora parisiense de “beaux livres” mesmo se a preços olé, olé. As ilustrações são fabulosas e servem uma série de hagiografias mais ou menos imaginosas. A gravura representa Santa Úrsula e as onze mil virgens.