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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

estes dias que passam 413

d'oliveira, 04.06.20

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Os dias da peste

Jornada septuagésima oitava

Bon Cop de Falç

mcr, 4 de Junho

 

 

 

Não sei se alguns dos meus leitores (se é que mereço um plural para estas balivérnias que vou dando à estampa) já ouviu "Els Segadors" hino nacional da Catalunha. Para evitar alguma denúncia por anti-catalanista servir-me-ei da descrição do meu amigo Eugeni Gay: "é uma canção bárbara em que camponeses revoltados, vindos das comarcas ameaçam levar tudo a eito a golpes de foice (a colps de falç)". É que na Catalunha, segundo o cosmopolita Eugeni, há duas espécies de catalães: os de Barcelona (divididos em gotics, rambleros e mala vita) e os das comarcas, espécie definitivamente sanguinária muito dada ao consumo de "butifarra" e a dançar sardanas enquanto os da capital se ficam por melancólicas habaneras.

 

E mais me contou o Eugeni, já na altura acolitado por uma mulher espertíssima e das comarcas, "se ouvires uma catalã a cantar "els segadors" olhando para um homem é sinal certo e seguro que lhe quer fazer a cama em sentido próprio e figurado".

 

Tudo isto ocorreu na aquática Amesterdão onde levávamos a cabo um esforçado curso de direito comparado. Entre os compinchas, que do resto do mundo, vinham ao mesmo que nós, estavam dois amabilissimos polacos respectivamente chamados Lechoslav Stepniak e Jan Wawrzyniak (Lech e Jan para facilitar).

 

O bondoso, ainda que severo, governo polaco daquele tempo, tinha-os deixado sair para o estrangeiro e levara a sua generosidade ao ponto de lhes permitir exportar 16 dólares por cabeça. Ao câmbio da época cada dólar valia 5 florins pelo que os dois viajeiros tinham o suficiente para tomar um pequeno-almoço ligeiro por dia e durante cerca de um mês.

 

Jan e Lech não se descompuseram com a escassez das divisas e desembarcaram entre nós munidos de duas enormes malas suplementares onde mimosamente vinham acondicionadas umas dúzias de garrafas de vodka, mercadoria que apesar de líquida se pode, sem demasiada dificuldade, transformar em moeda sólida e ocidental.

 

Sabendo isto alguém terá proposto que, sempre que possível, os ricos (nós todos !!!) fingissem oferecer uma festa a que, claro, os polacos fossem convidados.

 

Depois se fariam secretas contas. E foi assim que Agosto começou a correr.

Foram os anos da Callandrelli, da Renata, do Michael os esponsais (verdadeiros) da Silvia e do Pieter, o dia nacional da Nova Zelândia (!), o aniversário do meu casamento (!!!), a inauguração da nova casa do Bob (que já tinha 2 bons anos...) e finalmente o baptismo de um carro que eu e três amigos comprámos e a que faltava a porta dianteira direita. Por razões de gratidão demos-lhe o nome do 1º ministro holandês que fora professor da faculdade e a quem devíamos uma bolsa sumptuosa.

 

Os polacos compareciam com uma flor roubada no Vondelpark e uma garrafinha do veneno nacional. Eram educadíssimos, gentis e falavam o doce francês que se usava na Europa Central. A seguir a dois neozelandeses eram a coqueluche da sessão de Amesterdão.

 

Tudo corria lindamente neste enevoado mundo de canais, cerveja Heineken, genebra e vodka da melhor, quando decidi esclarecer melhor a origem daquela onda de solidariedade.

 

Em boa hora o fiz porque, mesmo antes de perguntar fosse o que fosse, dei de caras com outra velha amiga, Tany M., catalã de encher o olho, a cantar com guerreira jovialidade os tentaculares "els segadors". Perto, olhos de carneiro mal morto e ademanes de príncipe polaco, o Lech preparava um cordial à base de gelo moído, sumo de limão e muita vodka.

 

Alguns catalães (Xavier Andreu, Ferran Camps e Eugeny Gay) olhavam para o brioso jurista da Europa Central como, seguramente, os patrícios, lá na terra, olham o touro antes da estocada final.

 

Juntei-me aos restantes ibéricos e, com eles, baixo e a contra-tom, entoei os versos finais

 

 

                                                     "a les armes catalans

                                                     que en han declarat la guerra.

                                                     Bon cop de falç!..."

 

 

 

Gaudeamus igitur!

 

 

 

Gaudeamus igitur!

 

Este texto tem uns 30 anos  e foi escrito, se bem recordo para a revista "mea libra" editada pelo CCAM. Depois passou a plaquete com mais outros da mesmalavra, com o mesmo tutulo geral (Gaudeamis igitur) que mais não é do que o que na altura se considerava ser o "hino" dos estudantes europeus. Fundamentalmente o gaudeamus cujo verdadeiro nome é "de brevitate vidae" vem do século XIII e é mais um poema jocoso do que outra coisa. quando e como começou a ser usado pela estudantada universitária é questão mais espinhosa mas há quem ligue o poema à boémia universitária, coisa evidentemente compreensível.

Com esta série, celebro o fim retardado da minha vida estudantil quando, já licenciado e a exercer, frequentei o Curso Superior de Direito Comparado  que terminei já em 75. Aprendi alguma coisa, sobretudo como era a democracia a funcionar. E a ideia de Europa, nessa altura algo de longínquo para qualquer português. E fiquei vacinado contra todos os extremismos, ou melhor contra o de Esquerda que quanto ao de Direita eu já tinha adquirido imunidade suficiente no longo período que vai de 1960 até 75. 

Uma ex-cunhada minha e dois amigos acharam que este quase "diário" é também memorialístico. Talvez, mas de todo o modo uma criatura de Deus (mesmo não crente...) é feita de tudo como bem diz a bela canção "sixteen tons". Por outro lado, tento despertar nos eventuais leitores algum  sorriso que isto da pandemia tira uma pessoa do sério. 

convém acrescentar que "... a nudez forte da verdade" é bem agazalhada por um ténue manto de fantasia, o que ocorre em todos os textos da série. Pelo menos essa é a lição de Eça de Queiroz.

E já que alguns dos citados são catalães nada melhor do que recomendar um filho de emigrados galegos que nasceu e cresceu na Catalunha: Manuel Vasquez Montalban, fartamente traduzido em Portugal. E se, acaso, o catalão não vos assusta recomendaria qualquer livro de poemas de Salvador Espriu (e sobre todos "La pell de brau". A minha edição tem cinquenta anos, é da responsabilidade de "Cuadernos para el diálogo" e tem a vantagem de ser bilingue). 

* a vinheta: Amsterdam Oh que saudades!...