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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 416

d'oliveira, 07.06.20

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Os dias da peste

jornada octogésima primeira

caminhos cruzados

mcr, 7 de Junho

 

 

“Que Portugal seja europeu, liberal, decente, favorável à criação de riqueza, que haja igualdade de oportunidades, que os mais fracos tenham um rede social de protecção e que sejamos bem governados.... amar a liberdade acima de tudo... estar na fronteira da luta contra populismos de direita ou de esquerda para que não dominem a agenda política.”

 

Se no Portugal decente, couber a tolerância, como penso e a cultura como pressuposto daquela, estou com o autor destas palavras que acabo de reproduzir.

Todavia, algo me confunde: há cinquenta e tal ano, o autor destas palavras tinha sido membro de uma comissão administrativa da AAC, votava contra a greve de 69, era a favor do Governo da altura, da guerra em África e, se bem recordo, não via com bons olhos a “Europa” de que agora se reclama e que, justamente era democrática, liberal, anti populista, decente e favorável à criação da riqueza.

E eu, sentia-me absolutamente europeu, abominava a guerra na generalidade e as africanas en especial, acreditava talvez piamente na possibilidade de se poder viver num sistema pluripartidário ao mesmo tempo que sentia como um insulto que boa parte da população do meu país não tinha igualdade de oportunidades, uma rede social de protecção e que, por isso mesmo, desandavam para outras paragens, passando a fronteira a salto e, por isso, muitas vezes desertando. E eu, outra vez, não só apoiava essas dezenas, centenas de milhares de portugueses mas, um pouco mais tarde, com outros poucos amigos, colaborava numa rede de passagem clandestina da fronteira norte.

Somos da mesma geração se bem que eu seja mais velho, encontramo-nos em reuniões de curso e conseguimos não só conversar amenamente mas rirmo-nos das mesmas coisas.

E, porém, mesmo depois do 25A, estivemos em formações políticas absolutamente diferentes, apoiámos soluções governativas claramente opostas.

Eu demorei pouco tempo na política activa pois, para mim, a partir dos primeiros anos 80, o essencial estava conseguido, ou seja a liberdade, um ensaio de Estado social, o crescimento da tolerância, o caminho para a Europa estava desbravado e até ra possível, como foi, alguma alternância política.

Não era o melhor dos mundos, bastava um sistema fechado de eleição de deputados para o Parlamento que promovia (e promove) os medíocres para eu ficar horrorizado. Sempre entendi que tal sistema, fortalecia os “aparelhos” partidários, afunilava as escolhas, excluía quase todos (ou, pelo menos, muitos) quantos pensavam pela própria cabeça e suscitava um crescente afastamento dos eleitores e um claro crescimento da abstenção.

Identicamente, fui sempre contra a ideia de uma regionalização que nunca fez sentido, sobretudo porque nunca se pensou seriamente em descentralizar tudo o que podia ser descentralizado e que é muito. Num país com dez milhões de habitantes, com um litoral sobrepovoado e um interior esquecido, quando não desprezado, a regionalização significará sempre, mais Estado, mais burocracia, mais funcionários públicos e mais mini-Lisboas e mini-Terreiros do Paço. Não há, nunca houve qualquer espécie de tradição regional num país pequeno, sem especiais diferenças ou fronteiras naturais dentro dele.

E o exemplo das “regiões autónomas” não convida ninguém e muito menos entusiasma quem quer que seja. . Para Albertos João, bastou um. As autonomias são óptimas para as pequenas e médias ambições locais e uma despesa constante para a pátria sempre madrasta que é acusada por tudo e por nada e que é chamada a tapar os contínuos buracos financeiros e económicos que são suscitados pelas políticas regionais que têm de acudir a todos os paroquianos sob pena de serem derrubados os seus responsáveis.

Todavia, e voltando ao meu antigo adversário político dos anos difíceis, o que me interessa reter é o facto de ter feito a longa viajem do radicalismo de Direita para um quase Centro-Esquerda, centro pelo menos, tendo inclusive, contra o partido em que, depois de 74. militara muitos anos, apoiado António Costa para a Presidência da Câmara de Lisboa. Ele que no início da “primavera marcelista” poderia ter apoiado a “ala liberal” mas preferira o bunker já agónico do regime. It’s a long, long way to Tipperary...

Tive bem menos caminho para andar. É verdade que, o peso das circunstâncias, me fez ser, por algum tempo, um compagnon de route contrariado do PC e depois, justamente porque me comecei a interessar pela história do socialismo, um activista desalinhado mas com alguma simpatia pelo que se passava na China. Durou pouco esse namoro à distância, graças não só aos alucinados argumentos brandidos pelos guardas vermelhos de livrinho vermelho em punho, mas sobretudo ao que fui descobrindo espantado nos mao-ocidentais intelectuais franceses e italianos. Tinham pura e simplesmente trocado o antigo fascínio pela URSS, infrequentável depois da Hungria e de Praga, pelo mais longínquo de Pequim. Com uma vantagem, para eles. Como não sabiam chinês, sujeitavam-se, nas visitas ao “Oriente Vermelho” à pregação dos intérpretes que o PCC lhes fornecia quando visitavam comunas populares, fábricas ou assistiam embevecidos aos paupérrimos espectáculos de bailado e óperas revolucionarias. Aquilo que no Ocidente seria considerado de um kitsch miserável era para estes novos conversos o maior espectáculo do mundo.

Graças a um sogro amigo e conhecedor, li muito cedo, dois, aliás três livros fundamentais de André Gide: “Voyage au Congo et retour du Tchad”, “Retour de l’URSS” e “Retouches a mon retour de l’URSS”

Gide foi a partir de muito cedo um dos principais escritores franceses, fundador da NRF, descobridor de talentos (no entanto perdeu Proust!, coisa que não só admitiu depois mas de que se arrependeu). A partir de meados dos anos 20 torna-se cada vez mais uma voz da Esquerda sem partido ou, melhor ainda, um adversário da Direita francesa e mundial. É dessa altura “retour du congo” fruto de quase um ano de estadia na colónia. A “reportagem” de Gide é um documento único. Pela clareza, pela novidade, pela condenação absoluta do facto colonial e da situação dos negros. Convém ter em linha de conta que este livro surge no exacto momento em que as metrópoles europeias celebram com grandes exposições coloniais o seu domínio sobre África.

Anos depois Gide, o mais admirado dos escritores “progressistas” franceses e europeus, é convidado para visitar a União Soviética. O livro que traz dessa viajem é uma pedrada no charco e suscita contra ele uma campanha furiosa e odienta onde se salienta Aragon, uma das suas “descobertas” que a Gide devia muito. Indignado com a campanha, Gide réplica com um segundo livro “Retouches a mon retour de l’URSS” em que põe a nu tudo o que um certo pudor “de esquerda” o fizera calar.

A partir dessa publicação, começam a aparecer outros testemunhos, o stalinismo já não faz a unanimidade tanto mais que dissidentes russos de todas as partes começam a tentar fazer o processo daquela paranoia.

Ora, foi graças a estas leituras cruzadas, aos testemunhos sobre os processos de Moscovo, a outros ainda mais pungentes sobre a guerra de Espanha e o destino da grande maioria dos “internacionais” (agentes do Komintern, militantes clandestinos de antes e durante a guerra caídos em desgraça) que comecei a ter a noção do que de facto era aquele universo. Bastaram-me uns meses em Berlin para perceber o resto, a vida miserável e triste no “leste”, a infâmia de um muro que não defendia os trabalhadores da DDR antes os impossibilitava sob pena de morte de conhecer a situação dos seus camaradas ocidentais. Foi já a essa duvidosa luz que comecei a suspeitar que a simpatia pela China revolucionaria carecia de mais estudo, mais atenção e mais reflexão. Não foi necessário muito para perceber que o “Grande Salto em Frente”, a política das “Cem flores e cem escolas”, a “Grande Revolução Cultural” traziam na bagagem milhões, muitos milhões de mortos, um retrocesso civilizacional gravíssimo, o culto da personalidade elevado à décima potência, a descoberta da existência de uma clique poderosa e corrupta que, aliás, acabou por cair, enfim exactamente o mesmo com quase cinquenta anos de atraso do que sucedera na URSS a partir de meados dos anos vinte. Em 1970/1 poderia não saber o queria mas sabia perfeitamente o que não queria.

Para além dos livros de Gide, lêem-se com grande interesse “Les procés de Moscou” (presentes para Pierre Broué, col Archives, Juillard; “Les bolcheviques par eux-mêmes” Georges Haupt e JJ Marie, François Maspero (esta antologia inclui os depoimentos dos dirigentes bolcheviques `Enciclopédia Granat seguidos de um breve resumo sobre o fim deles), quase todos os livros de Simon Leys (indispensável) e o curiosíssimo ”Révo.cul.dans la Chine pop” 10-18, um apanhado da imprensa dos Guardas Vermelhos. Depois disto, Tien-An-Men parece um conto de crianças.

A maior parte destes livros terão de ser encontrados ou em alfarrabistas ou na amazon.fr que costuma ser um alfobre de descobertas.

Gostaria de propor dois discos absolutamente notáveis de uma grande pianista chinesa que passou largos anos da sua juventude e adolescência num campo de trabalho para ser “reeducada” O seu crime foi ser uma brilhante aluna de piano de um dos melhores conservatórios de Pekin. Tal delito tinha de ser punido. Ao contrário de muitos outros intérpretes, ela conseguiu salvar-se.

Eis as propostas Zhu Xiao-Mei “Goldberg Variations” e “Die Kunst der Fuge”, Bach. Edição(recente) de Accentus Music

 

* a vinheta: eu queria mostrar uma imagem de um bailado que acaba com o grande timoneiro a fazer de sol poente mas não a encontrei. De todo o modo, a gravura que apresento diz tudo.