estes dias que passam 417
Os dias da peste
Jornada octogésima segunda
Vocação para criado de servir
mcr, 8 de Junho
A pátria está ufana, continua o seu percurso triunfal, venceu apeste maligna e prepara-se para receber cabazadas de turistas ingleses. Ingleses de Inglaterra, o tal país que mete qualquer turista lá chegado numa alegre quarentena. Em contrapartida, infectados ou não, eis que se espera receber os bifes em grande pompa.
Os ingleses desejados costumavam vir em low cost e distinguiam-se dos outros turistas pelas bebedeiras monumentais e por um número exagerado de arruaças no Algarve. Fora isso, escorria pouco dinheiro que aquilo era turismo de ´é descalço.
É verdade que, ao lado dos proletários também vieram e compraram casa, outros que se foram vagamente, muito vagamente, integrando no mesmo Algarve se bem que mais longe das praias e mais perto dos campos de golfe.
Parece mesmo que se inventou um modo expedito de atrair turistas. Ao sal sol e sul, junta-se a facilidade de os não incomodar com testes e outras maçadas vagamente sanitárias. Depois desta primeira leva, virá outra e assim sucessivamente. Até se voltarem a encher os tuk-tuks, o alojamento local, as tascas e pequenos restaurantes das baixas de Lisboa e do Porto. Uma sorte para as dezenas de guias improvisados que enchem o Largo de Camões e que pastoreiam manadas de criaturas para tirar a ritual fotografia na mesa do Pessoa, na Brasileira e ouvir um par de generalidades no Rossio.
Não faço ideia de como é no Porto, mesmo cá vivendo, pela simples razão de raramente pôr o pé na Baixa. Mas não deve ser muito diferente.
Note-se que não sou inimigo dos turistas mas entendo que a sua maciça vinda não deveria pôr em causa a habitação de muita gente humilde, nem tornar bairros inteiros numa espécie de dormitórios reservados a estrangeiros. Contas feitas, se alguns (bastantes) ganham, muitos, uma multidão, perdem.
E, depois, há um pequeno, grande, problema: o turismo é algo muito ligado a modas passageiras. Em o país passando de moda, as coortes de visitantes desaparecem num ápice. Temos disso larga experiência. Basta lembrar como as praias tradicionais portuguesas perderam frequência quando o Algarve irrompeu. A seu favor apenas tinha uma água menos fria. Tanto bastou para deslocar os banhistas da Nazaré, da Figueira, de Espinho ou da Póvoa.
A segunda grande questão ligada ao turismo é esta: nunca competiremos do ponto de vista do turismo cultural e monumental com a França, a Itália, a Grécia, o Egipto e mesmo a Espanha. Já no que toca a praias aí estão as da orla sul do Mediterrâneo, Turquia, Tunísia, Marrocos, Chipre e quendo (ou se) a paz chegar as dos restantes países do Magrebe om água ainda mais quente e preços altamente concorrenciais.
Mas por cá espera-se e desespera-se pelos turistas. Mesmo se os lucros, todas as contas feitas, não são assim tão grandes e sobretudo tão seguros em termos de futuro. Mas, enquanto durar, parece fácil e dá “milhões”. A troco de duas curvaturas de espinha, muitos sorrisos e a mão estendida. H´por aí muita vocação de criado para todo o serviço...
.....
A vaga de protestos contra o racismo na América não diminui, e ainda bem. Claro que não são apenas os Estados Unidos a sofrerem com esse flagelo. Por todo o continente americano, mesmo se a outra escala, ocorre o mesmo: pele escura equivale a menos direitos, menor acesso à educação e aos cargos políticos. No Brasil ou em Cuba, na Colômbia ou na Venezuela ser negro não é pera doce. A brutalidade policial essa é relativamente generalizada mas menos escrutinada. Ser “indígena” na América hispano-falante (já nem falo no Brasil onde os índios da Amazónia são quase uma espécie em via de extinção) é ser menos, sempre menos.
Conviria, porém, lembrar que, ao lado do racismo, temos outras segregações tão ou mais brutais. Ser muçulmano na China (ou ser tibetano); ser muçulmano na União Indiana; ser roiynga na Birmânia; ser muçulmano nas Filipinas; tudo isto para não falar de minorias étnicas em África ou em ser cigano em vários países europeus.
Talvez valha a pena reflectir neste (e noutros não mencionados) factor de perseguição ou de simples opressão em muitos pontos do mundo. Não para diminuir o problema racial americano que, aliás, se não limita à população negra mas se estende aos “latinos”, aos asiáticos ou mesmo aos povos mais antigos da América que continuam nas reservas ou seja nas piores terras.
O grande problema continua a ser este: no momento todos protestam, todos se exaltam, todos condenam. Um mês depois, regressa-se `”normalidade” e os invisíveis continuam invisíveis.
Finalmente, convém não baralhar a situação nos Estados Unidos com, por exemplo, a portuguesa. Não nego que não haja aqui e ali preconceito de cor, com todas as consequências que isso implica. Mas há uma abissal diferença com quase todas as situações que acima apontei. De quantidade e de qualidade.
Vi, há momentos, uma reportagem francesa e lembrei-me do que os músicos de jazz americanos dizimada França: aqui somos recebidos como pessoas. Não foi por acaso que o pai de Alexandre Dumas, mulato, foi general de Napoleão. Ainda em pleno sec. XVIII!
Seria bom que por cá se tivesse um sentido claro de realidade para não confundir planos nem situações. Ao fim e ao cabo, temos um primeiro ministro descendente de indianos. Se é verdade que algum taxista lhe chama monhé não menos verdade é que ele goza da confiança de uma maioria de portugueses que, pelos vistos, se estão nas tintas para a cor de pele dos seus políticos, dos seus médicos, dos seus futebolistas. As vozes de quatro imbecis não só não chegam ao céu como também só os representam a eles. Só a eles!
* a vinheta: criança de cinco anos na União Indiana a partir pedra. A legenda da gravura afirma que só aqui há 115 milhões de crianças com menos de 14 anos que trabalham em condições infra-humanas.