estes dias que passam 431
Os dias da peste
jornada nonagésima sétima
A história trágico-marítima segundo Reynolds
mcr. 23 de Junho
Quando havia uma tempestade no canal da Mancha os jornais ingleses costumavam afirmar que a Europa estava isolada. Provavelmente os insulares súbditos de Sua Magestade pensavam que os europeus não sabiam nadar e que um canal como o deles era intransponível. Isto apesar dos normandos o terem atravessado sem dissabor e de o nosso portuguesíssimo Baptista Pereira, por duas vezes e num "crawl" mais que decente, o ter vencido.
Desta confiança no Canal, melhor nos canais, tive, nos já longínquos anos de 72/75, uma confirmação mais do que superlativa.
Nesses tempos felizes e descuidados, aproou à Faculdade Internacional de Direito Comparado um inglês que respondia ao vulgar nome de Michael Reynolds. Meão de altura, cara risonha e sardenta e uma sede polaca e ancestral. Acrescente-se, como única excentricidade notória, o dom e o gosto pelas línguas francesa e italiana que ele praticava com facilidade e elegância.
O Michael apareceu-nos em Pescara, terra natal de D' Anunzio, e logo ao fim do primeiro dia, tinha pronta e verificada a difícil geografia dos bares e tascas da cidade.
Adoptámo-lo imediatamente tanto mais que ele fazia um spaghetti al pesto digno de louvor sobretudo, e era geralmente o caso, quando a fome apertava cerca das quatro da manhã.
Foi numa funesta noite em Veneza que recebemos o primeiro aviso de que o nosso Michael (jamais Mike, s.f.f.!) era atraído por canais. De facto, enquanto víamos um grupo de turcas dançar, o Michael caiu no Rio della Paglia. "Antes fosse na Riva del Vin que ía mais a condizer" -foi o comentário do Édmond Gérard, luxemburguês imperturbável e subtil que assinava por mim nas aulas do meio dia quando eu me baldava para a praia.
Em Amsterdão, no curso seguinte, reuniu-se de novo a mesma tertúlia amável para mais um ciclo do Curso de Direito Comparado. Um distinto cavalheiro que dava pelo nome de V.W. Bossenbroek levou a sua extrema hospitalidade ao ponto de nos franquear gratuitamente (isto é sem pagar jóia e quotas) e durante todo o período da nossa estadia, as portas da Stiching Societeit Uilenstede que era, de facto, um honradíssimo bar de estudantes da Vreie Universiteit Amsterdam. Abria às dez da noite e encerrava às seis da matina. Os jurídico-comparatistas, por muito canudo de direito que ostentassem, gostavam, com alguma desmesura só perdoada pelos verdes anos, de alcoóis brancos ou tintos, da genebra traiçoeira, da Heineken e de toda a restante e copiosa variedade de bebidas que, a preço módico, a SSU fornecia.
Numa noite, em que as libações,por via do frio que faz no verão holandês, terão sido, digamos, substanciais -e, à saída- o Michael mergulhou de chapa num canalzinho de dois metros de largura que saía de um braço do Amstel e se perdia entre Amstelveen e Uilenstede.
-"Este gajo tem a mania de tomar banho à noite!" -soltou o Gérard para um luzido grupo de meninas em que avultavam, -benditas as mães!- a Catherine Fox e a Maria Kirkos.
Esta estranha repetição de banhos terá enervado alguem do grupo pelo que decidimos convocar o aquático "bife" para uma reunião de emergência no "Bistro Anette". Aí, apanhado ele sóbrio, exprobámos-lhe a atitude demasiado líquída para um "fellow" de Cambridge e cominámo-lo a deixar de frequentar qualquer espécie de canal. Enumerou-se, mesmo, em documento hoje em mãos de Maître Jean François B, uma série de canais entre os quais avultavam os de Suez e de Corinto (este a instâncias patrióticas da Maria e do Stellos).
Ora sucede que sete anos mais tarde, em Paris, a Catherine Fox me apareceu de telegrama fresco e urgente na mão. O nosso Michael tinha naufragado em pleno canal do Panamá a bordo de um barco bananeiro.
Melhor dito: o barco rebentara com uma comporta e adernara atirando o sedento britânico para aquele no man's land que já não é Atlântico mas ainda não chegou a Pacífico.
O Michael informava que só naufragara naquele lava-pés yankee por não constar da lista de proibições que fora estabelecida na ridente Amsterdão...
Em nome e representação da restante comandita, espalhada por esse vasto mundo de Deus, a Catherine e este vosso criado telegrafaram para Londres perdoando o recente naufrágio (tanto mais que além de frustado não se verificavam dolo, má fé ou sequer erro grosseiro) .
Recordava-se, todavia, ao trágico-marítimo malgré lui a velha máxima conhecida de todos os juristas: non bis in idem !
Gaudeamus igitur !
Ai, leitoras e leitores generosos, escrever poucas horas antes da grande, risonha, explendida, lasciva noite, mesmo sabendo que não há (?) gente festiva e marota de alho porro na mão, mangerico, erva cidreira (ou infelizmente, estupidamente etc...) de martelinho a zurzir as cabeças alheias, a cantar orvalheiras, orvalheiras, orvalheiras/ora viva o rancho das solteiras, que as rusgas não se farão, que ninguém irá das Virtudes à Ribeira, ou de S Lázaro às Fontaínhas, suspeitando que esta noite de balões e amores vadios (ai que saudades, ai que memórias!...) que soem terminar nas praias da Foz, de Gaia, de Matosinhos e de Leça, é duro.
Não que eu, mesmo atrevendo-me a pensar que sou um velho "verde" (pelo menos na cabeça...), fosse para meio daquele imenso sarrabulho de gente de quase todas as idades, estratos sociais, religiões. Mas, há uma tradição que eu respeito, ou várias, como por exemplo, comer as primeiras sardinhas do ano, mesmo se elas ainda não pingam no pão que isso é lá para Agosto, oferecer um vaso de mangerico à CG, outro à Ana, e mais, se mais mulheres aparecerem a quem vier, comprar o alho porro à primeira vendedora que me há de chamar "ó meu amor compre aqui que é mais barato", mentira absoluta que, em nome do "degolado" lhe perdoo, enfim cumprir com a tradição.
Eu, que vivo no Porto, por razões que tem a ver com o primeiro casamento (já lá vão demasiados anos) entrei no grupo de devotos de S João, sem dificuldade. Ao fim e ao cabo, o S João é a maior festa da Figueira da Foz (não de Buarcos, terra de pescadores devotos de S Pedro mas mais devotos ainda da Senhora da Encarnação). Desde pequeno qe fazia a ronda das fogueiras na rua da minha casa, fogueiras as mais das vezes feitas na praia que o lado esquerdo da rua era isso mesmo, areia e, nas marés vivas mais violentas mar a lamber a rua.
Em boa verdade sempre me pasmou este S João (e os outros dois compadres António e Pedro) profeta desarmado, homem austero que criticava violentamente o poder. então, aqui, nesta terra debruçada sobre o mar, o diabo do homem protege amores? E amores efémeros, de uma noite, entre desconhecidos ou quase, amores pecadores (que são os melhores, como diz uma canção popular italiana), como é isto possível. Mais: como é que a Igreja portuguesa, tão conservadora que ela era (e ainda será), fecha os olhos, assobia para o lado, finge não ver as faces coradas que no dia do santo irão à missa, limpar devotamente mas sem grande pesar, os pecadilhos e pecados de toda a noite?
Eu não sei de que terra serão (uso o plural com ousadia) os meus leitores. Os do Porto acharão tudo isto natural. ao fim e ao cabo é uma inteira cidade, aliás várias (de Gaia a Matosinhos, da Maia a Gondomar) qu se precipita para o centro do Porto e, zás, entra na festa sem dizer água vai ou pedir licença. Mas os de fora imaginarão sequer o reboliço disto?
Um grande amigo meu e respectiva mulher, francesa ela, vieram há muitos anos passar o S João a convite meu. Nem vos digo, nem vos conto: foi tremendo. Primeiro portaram-se como tripeiros e a Jackie até já falava à moda da Ribeira, segundo, eles que vinham por um dia só desandaram depois do S Pedro, e da festa da Afurada, no outro lado do rio e festa rija também. Declararam-se portuenses, digo tripeiros de nascimento arrenegando Lisboa e Paris, os ingratos!... " mcr, meu querido podemos continuar albergados no teu apartamento?" -"então não podem. ficam, pois claro" E os meus amigos do Porto todos à compita para um almoço hoje, um jantar amanhã, entusiasmados com o duo maravilha que saiu de cá a custo, quase chorando. Estão a ver o que faz o S João?
Estão a ver o desastre que é não haver S João hoje?