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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 439

d'oliveira, 01.07.20

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Os dias da peste

Jornada centésima quinta-feira

Livros imaginários

mcr, 1 de Julho

 

Tão mau ou pior do que livros desaparecidos é livros anunciados que nunca foram publicados. E pior ainda, livros que fazem parte de uma colecção ou de uma série, amplamente anunciados mas desaparecidos.

Nos últimos anos do século pretérito, distinguiu-se bastante o professor A. H. Oliveira Marques (1933-2007) um reputado historiador, autor entre muitas outras obras de uma História de Portugal editada em 1973 que repunha com clareza e limpeza uma história sonegada e escrita (e ensinada) à medida do Estado Novo.

Foi um escândalo e um enorme êxito de livraria. Marques, doutorado, professor que passara por grandes universidades americanas, regressava ao torrão natal e publicava dois grossos tomos de uma história que muitos apenas adivinhavam. Escreveu, evidentemente muitos outros livros quase todos de grande qualidade e interesse mas esta primeira lança em África ficou na memória de muita gente do meu tempo e geração como uma marca indelével.

Além do mais, o professor doutor (por extenso se fazem favor) Oliveira Marques era claramente da “oposicrática”, mação até dizer basta (o que não sendo virtude não desdoura ninguém) e tinha um estilo de escrita claro, nada presunçoso, coisa que naquela época (e sempre, aliás) deve ser louvada, triplamente louvada como na cantiga de Gilberto Gil (e na interpretação de Elis Regina, a melhor que conheço).

Marques, porém, devia ser extremamente buliçoso e workaholic pois metia-se em empreitadas tremendas e trabalhosas que, obviamente, lhe deviam dar uma trabalheira insana.

E é a isso que venho. Nos anos 90, e quase simultaneamente, anunciaram-se duas fortes colecções de história portuguesa: a “Nova História de Portugal” dirigida por Oliveira Marques e Joel Serrão (11 volumes, editorial Estampa) e a “Nova história da Expansão Portuguesa” sob a direcção única de Marques (12 volumes, Editorial Presença).

Os volumes, como é (mau) costume em casos destes, foram saindo em ordem dispersa. De facto como cada um desses tomos era um tijolo que reunia trabalhos de diferentes autores sob a direcção de um outro, compreende-se que a saída fosse ditada pela rapidez de cada um dos organizadores e da eficácia que demonstrava em galvanizar e obrigar a trabalhar os restantes colegas.

( o Luís Miguel Duarte, um brilhante medievalista e professor na Universidade do Porto contou-me uma vez como o José Mattoso se tornava intratável quando tinha de aguilhoar um dos seus colaboradores mais lento. Conhecendo, razoavelmente o Zé, fiquei espantado com as zagunchadas muito pouco ortodoxas que ele atirava aos restantes. Nem se coibia na linguagem usada! Aquela aparente doçura e serenidade beneditina escondia um uso de vocabulário vicentino que raiava o linguajar de Buarcos)

Portanto está explicada esta saída anómala e desordenada dos volumes. Entende-se. se bem que eu, que gosto de levar as coisas a eito, prefira ir por ordem nesta caminhada pela história pátria. É que há coisas que só se explicam dados os antecedentes, ou pelo menos percebem-se assim melhor.

O problema, o grande problema é que nenhum destes grandiosos trabalhos ficou completo. A “Nova História de Portugal” ficou manca de dois volumes, o 6º e o 8º respectivamente sobre a época da contra-reforma à restauração e a crise do antigo regime.

A “Nova História da Expansão Portuguesa” deixou pelo caminho o 1º volume (logo o primeiro!) o 4º (primeiro tomo dos consagrados ao império oriental) e o 9º (primeiro volume dos consagrados ao império africano). Este, especialmente, desanima-me fortemente. À uma é um dos temas que mais me interessou e, depois, tem a coordenação de Valentim Alexandre, um velho amigo dos tempos de Coimbra, onde aportou, expulso da Universidade de Lisboa na altura da crise de 62. E o Valentim é, sem qualquer dúvida, um notabilíssimo especialista do tema. Eu sou amigo dos meus amigos mesmo se, e como é o caso, já os não veja há décadas mas isso não influencia minimamente o que penso sobre eles quanto a talento e sabedoria (Amicus Plato sed magis amica veritas!, tomem latinório fino. Embrulhem!)

Eu compreenderia que uma morte súbita do coordenador geral ou de cada um dos volumes ocasionasse uma farta dose de problemas. Ou que uma falência da editora tivesse um resultado idêntico. Mas nada disto aconteceu, pelo menos à primeira impressão. A NH Portugal teve o seu último volume (o Estado Novo, Fernando Rosas) publicado em 2001 e a outra colecção estava quase completa ainda nos anos 90.

Aliás, assim amputadas, ambas as obras perdem valor. Se mesmo completas poderão a breve trecho ficar desvalorizadas por razões de toda a ordem, especialmente o facto de constituírem um certo esforço financeiro, de ocuparem muito espaço

(não se riam: leitores impenitentes como eu tem dificuldades medonhas em meter o Rossio na Betesga, isto é em conseguirem organizar as suas estantes de um modo mais ou menos decente. Já não basta os livros terem por vezes formas caprichosas ou não caberem na estante que lhes está destinada por serem muito altos, há ainda este facto perturbador de pura e simplesmente não caberem. Ainda agora, tive, terei, de resolver o caso de um pequeno livro de Henrique de Carvalho (“O Lubuco”, uma curiosa polémica do autor com um seu comentador e crítico) que pura e simplesmente não cabe na estante onde jazem todas as restantes obras do autor incluindo uma edição vadia e americana do seu raríssimo álbum de fotografias tiradas durante a expedição ao Muatiânvua. Este álbum de que se conhecem 3 exemplares tem o título de “álbum etnográfico” nunca foi editado, o que prova à saciedade, se preciso fosse, o quão primitivo e tolo é o nosso Ministério da Cultura.

É verdade que das fotografia (quase 300) se terão feito excelentes gravuras que acompanham a sumptuosa “Expedição Portuguesa ao Muatiânvua” (8 vol.), um dos melhores e mais bem documentados livros de viagens africanas que existem.

Todavia, com os actuais meios de reprodução e impressão de fotografias antigas, é um crime cultural não editar o álbum. Editou-o com fracos meios e à balducha um inglês (EOD Reprint “provided by National Library of Portugal”) e tenho a impressão de que nem sequer as fotografias estarão reproduzidas com o tamanho original..)

Segundo parêntesis: nisto de fotografias que registam muito do nosso passado colonial não posso deixar de mencionar um conjunto de 10 álbuns com o título genérico de “álbuns fotográficos e descritivos da colónia de Moçambique” da autoria de José dos Santos Rufino, 1929 numa cuidadíssima edição de Broschek & Co. Hamburgo.

A colecção raramente aparece à venda como conjunto pelo que é preciso muita paciência e tenacidade para conseguir a totalidade dos volumes que, aliás, alfarrabistas ignorantes ou ávidos vão vendendo de qualquer maneira, volume a volume quando poderiam reunir a série e obter muito melhor preço por ela. Eu comprei-os um a um a preços diversos mas consultando apenas um leilão já terminado verifico que a série rendeu quase o dobro do que paguei. )

Um outro autor (José de Almada) passa os mesmos trabalhos para se enquadrar na prateleira dedicada aos seus trabalhos. Almada escreveu uma minuciosa obra sobre os tratados celebrados entre Portugal e outras potências colonizadoras (8 volumes mais duas caixas de mapas) bem como uma boa meia dúzia de volumes sobre a aliança anglo portuguesa. O último recentemente adquirido já só cabe deitado e provavelmente não o poderei mandar encadernar.

 

 

Ao fim desta jornada de lamúrias verifico que para os meus generosos leitores esta conversa deve ter sido uma seca medonha. Perdoem o incómodo mas eu perco-me por livros.

E por dizer mal!

Um velho amigo figueirense dizia, convicto que o lema de uma vida inteligente era: (1) os amigos não tem defeitos e (2) dizer bem era, sempre, supérfluo!

Às tantas, alguma razão teria.

* A vinheta: as prateleiras, por acaso vizinhas, do Almada e do Henrique de Carvalho