estes dias que passam 512
Os dias da peste 151
O silêncio de novo
mcr, 15 de Janeiro
Ya se van los pastores
a la Estremadura
Y se queda la sierra
triste y oscura
Em finais de 1970, estava eu em Berlin, à boleia da minha então mulher, estudante de Germânicas que, pela segunda vez, ia para o Goethe Institut melhorar o alemão.
Também eu me inscrevi no GI mas no ciclo inicial que do alemão liceal já quase nem me lembrava. Ou melhor só lembrava as “inutilidades” que de nada me serviam para me desembaraçar no dia a dia alemão.
Foi uma das melhores e mais proveitosas estadias em terra estrangeira não apenas pela aprendizagem da língua mas também, e sobretudo, pelo facto de poder viver num país livre, de poder comparar dois regimes políticos (bastava atravessar o Checkpoint Charlie), de conhecer uma boa dúzia de amigos de várias nacionalidades, diferentes experiências de vida.
Com quase trinta anos, o mundo pertencia-me, como no filme (que não vi e de que conheço apenas esses curtíssimos fotogramas...).
Eu tive a sorte de aos treze anos embarcar para África e de conhecer uma outra realidade que, com todos os defeitos (e eram gigantescos ...) me permitiu perceber toscamente, ingenuamente, o sofrimento dos negros e as delícias da vida colonial, o desembaraço e o pioneirismo da vida no “mato” mais um par de maneiras diferentes de me relacionar com os outros.
Muitos anos depois, mas isso será para outra jornada, muito me surpreendia o anticolonialismo absolutamente ingénuo dos meus amigos e camaradas, um sentimento quase pueril que não ia sequer às raízes do mal colonial nem pressentia (eu também não...) quão profundamente algumas situações perdurariam nas nações enfim “libertadas”. Voltemos porém, a Berlin, fins de setenta princípio do crepúsculo da revolta estudantil e auge da ultra-esquerda de que a Rote Armee Fraktion era o exemplo mais acabado (mais perverso, mais inútil, mais estúpido). Terei, mos próximos folhetins, tempo para narrar alguns exemplos tirados do real vivido por nós, estrangeiros que aprendíamos alemão e podíamos, com algum custo, atravessar a fronteira para o outro lado, o paraíso guardado por um muro crivado de balas e de vítimas mortais e por um enorme exército soviético lá aquartelado mas quase invisível.
Convenhamos que, do lado de cá mas absolutamente visíveis, víamos trpas americanas, inglesas e francesas. Aliás, o nosso alojamento ficava em Wedding, no sector francês e enquanto não fomos apanhados era no supermercado das tropas francesas que nos abastecíamos, comandados por uma autentica proletária chamada Martine, uma parisiense a quem devo muito vocabulário e muito calão. Entre os membros do grupo, havia uma professora primária espanhola, de Madrid que nos ensinou muitas canções populares castelhanas, entre elas aquela que que sub-titula a crónica de hoje.
A Maria tinha uma bela voz, uma enorme doçura e vinha, como a francesa, dos bairros populares de Madrid, desconfiava dos excessos esquerdistas a que assistíamos.
Agora, que, de novo, nos caiu em cima o malfadado confinamento, recordo a cantiga ao ver o silêncio e a solidão que se instalaram neste bairro de classe media alta. Apesar de tudo, não fechou tudo mas a pequena freguesia que se sentava nas esplanadas e percorria as galerias comerciais, desapareceu. Resistem a papelaria, um restaurante vegan reconfigurado em take away, o “mercadinho do foco” (pequena mercearia onde me abasteço de fruta, legumes, pão e mais três ou quatro coisas, o supermercado e uma óptica.
Em relação ao outro confinamento, houve progressos, pois o restaurante dá-se ao luxo de servir bicas cá fora sem direito a cadeira mas com real sabor a café de café.
Porém, aflige-me a sorte dos restantes comércios que, uma vez mais, pagarão forte e feio as hesitações e erros do Governo e o desvario dos cidadãos que se arriscaram e infectaram à tripa forra.
Retomo assim uma série, “Os dias da Peste”, que julgava concluída. A história repete-se sempre pelo menos duas vezes (Hegel) da primeira vez como farsa da segunda como tragédia (Marx)
E, já que falamos de farsa e de tragédia, ocorre perguntar como é que, em 2021, 47 anos depois do fim do “Estado Novo” , pode haver uma senhora procuradora da República que entende poder espionar jornalistas no exercício da sua profissão, tentando descobrir por meios no mínimo bizarros (para não usar termo mais forte e contundente), quais eram as suas fontes. Pelos vistos, houve de tudo, desde perseguição policial à socapa, fotografias tiradas à sorrelfa, invasão das contas bancárias.
Não é a primeira vez a que, espantados e assustados, assistimos a este género de actuações à moda dos sheriffs do Far West. Conviria explicar à senhora magistrada que os fins não (nunca) justificam os meios, que isto não é o “Duelo em OK Corral” (mesmo que se duvide que a senhora em causa conheça o filme do grande Sturges, ou sequer este realizador que com esta fita ganhou um”oscar”).
Há um par largo de anos, tivemos a oportunidade de assistir à invasão do parlamento por um outro magistrado que ia à caça de um deputado socialista acusado (pelos vistos falsamente como se provou em julgamento!) de predador sexual de meninos da Casa Pia. Não sei o que terá acontecido a esse herói justiceiro. Provavelmente progrediu tranquilamente na carreira, deixando para trás a honra perdida de um político promissor. Depois há queixas contra quem critica o MP e as rocambolescas aventuras de quem por lá se passeia.
Já não bastava a complicada saga do procurador europeu que, pelos vistos, ainda vai fazer correr muita tinta (e eventualmente algum metafórico sangue...) para agora se assistir a esta aventura.
Eu, aliás, recordaria que, há muito boa gente que jura que parte das revelações sobre processos mantidos em segredo de justiça não vem só de jornalistas atrevidos, de acusados, dos seus advogados mas do interior dos tribunais e do MP. Si non e vero... Entretanto, o escândalo foi tal (soprado também pelos interesses corporativos jornalísticos o que, aliás, se percebe bem) que já se anunciou um “inquérito” à actividade da procuradora.
Em tempos de pandemia, cheira-me que este inquérito vai acabar em águas de bacalhau mas isso é por eu ser indivíduo mal comportado, proclive a dizer mal, a procurar cabelo em ovo, enfim um inimigo das instituições e das autoridades legítimas. De resto isso mesmo consta de vários processos que, em tempos pelos vistos saudosos, me foram movidos por egrégios representantes da autoridade antes de 1974.