estes dias que passam 535
Os dias da peste 172
15% (e uma referencia a uma revolta esquecida)
mcr, 7 de Fevereiro
Já antes ouvira (ou lera) esta afirmação que ontem, novamente, e repetidamente, apanhei num noticiário televisivo: 15% dos doentes covid com mais de 75 anos morrem. Assim, à bruta: quinze por ccnto.
Nos outros grupos etários a coisa anda pelos dois ou reês por cento.
A informação não é recente bem pelo contrário. Tem meses e terá sido verificada e confirmada no Verão passado.
Aliás, terá sido essa a razão para em quase toda a Europa se ter fixado a barreira dos 75/80 anos para incluir os velhos no primeiro grupo de pessoas a serem vacinadas. De resto, isso mesmo foi exaustivamente visto nas televisões inglesa ou italiana entre outras.
E por cá? Pois por cá, mesmo tendo-se assistido à mortandade em lares, a famosa task force do sr Ramos pretendeu pôr a velharia no terceiro grupo. Foi preciso a gritaria feral e, sobretudo, as intervenções de Marcelo e Costa ( um deles até falou em “tolice”!) para adiantar os macróbios para o 2º grupo e, no caso de terem passado a barreira dos 80, para estes meses.
Este é o rasto, do cavalheiro que tem vivido a saltar de cadeira em cadeira sempre que isso signifique poder. (aliás, e já agora: se a criatura era assim tão excelente, porque é que tendo sido secretário de Estado da actual Ministra, deixou de o ser?).
Portanto, e deixando alguns pormenores demasiadamente nauseabundos, pode dizer-se que a caça aos idosos está aberta: claro que não é exactamente como na Torre Bela mas é igualmente feia.
Andava eu na escola primária de Buarcos e no livro de leitura da quarta classe figurava a história de um homem que conduz o pai para o monte onde o deixará para morrer. Quando lhe entregou o lençol que o protegeria dos frios da noite, o velho disse-lhe que o rasgasse ao meio para mais tarde o filho o usar quando fosse a sua vez de ser abandonado. Aturdido o filho, agarrou no pai e no lençol e voltaram para casa juntos.
Agora já não se levam os velhos para o monte. Deixam-nos nos hospitais! Sobretudo, em alturas de férias ou de épocas festivas. Largam-nos lá e ala que se faz tarde.
Está a acontecer neste momento, segundo a televisão. Parece que alguns familiares alegam que a casa não tem condições para um convalescente. Isto quando se dignam responder aos instantes pedidos do hospital.
O Estado está desarmado perante esta miserável situação. Desconhecem-se propostas claras para ela. De todo o modo, muitos destes “idosos” são doentes pelo que o melhor é não os deixaram na mão dos extremosos familiares e procurar criar estruturas de apoio (cuidados continuados?) que respondam a este estado infame de abandono de pessoas.
Ao ler isto haverá, decerto, alguém que pensará que estou a defender uma causa própria. Que só agora, que estou numa idade avançada (há quem lhe chame bonita mas não partilho essa ideia) é que me deu para mais esta cruzada.
Lamento desapontar quem assim me interpreta mas não é o caso. Pertenço a uma família que, regra geral, sempre teve pessoas muito avançadas em anos por perto. Mesmo agora tenho ainda felizmente vivos quatro tias, a minha mãe e um tio. Tudo nos noventas! A minha avó morreu aos 97 e mae dela que foi vítima de acidente mortal morreu quando eu tinha vinte e cinco anos. E se a memória não m e falha a trisavó morreu quando eu tinha oito anos. É verdade que não conheci a última e só uma vez contactei a penúltima mas todos os restantes e alguns tios recentemente falecidos foram pessoas que contactei constantemente. O meu avô paterno morreu, em casa de meus pais, tinha eu quarenta anos. O pobre senhor tinha um Parkinson tremendo que o horrorizava e o fazia passar um mau bocado. Mas morreu serenamente, de noite, rodeado de cuidados e carinho familiares.
Metade dos meus parceiros de bridge tinham mais do dobro da minha idade e alguns duraram mais do que se esperava. Nem a doença os afastava da mesa de jogo mesmo que tivessem de ser ajudados. Habituei-me a essas presenças, desde cedo e descobri nesses velhos tesouros de toda a ordem. Ainda hoje me arrependo de não os ter chateado mais para poder saber mais de quase tudo, desde a história da colonização do sul de Angola até à história do PC e da oposição portuguesa desde o tempo do salazarismo. Agora só a minha mãe resta para contar coisas da vida familiar e de sucedidos há mais de oitenta anos. Dentre essas histórias recordo uma a da revolta do coronel Genipro de Almeida, chefe do Estado Maior de Angola contra o governador Filomeno da Câmara (um dos da revolta dos Fifis) que se escafedera de Luanda para Benguela (ou Lobito) para o Lobito deixando nas mãos do tenente Alfredo Morais Sarmento documentos em branco mas assinados para proceder a prisões de opositores (entre eles, possivelmente, como assegura Caldas Xavier em “o 20 de Março ou A revolta de Angola”, Luanda 1930, de kuribekas ou seja filiados na maçonaria). A fuga do Governador (alto comissário) e a entrega ilegal de plenos poderes ao azougado Morais Sarmento, levaram o coronel Genipro a fomentar um golpe de Estado colonial levantando todas as guarnições militares do norte da colónia. Ora a minha mãe assistiu à partida das tropas comandadas pelo meu avô em direcção a Luanda. Quando me contou esta aventura político-militar resolvi pesquizar (daí a razão da compra do livro de Caldas Xavier) e descobri que ela tinha uma memória prodigiosa desses dias que aliás terminaram com a morte de Morais Sarmento e a retirada para Portugal de Filomeno da Câmara. O vencedor Genipro não teve grande sorte pois também terminou aí a sua carreira politico-militar tendo regressado à “Metrópole” e provavelmente passado à reserva. Salazar não estimava rebeliões de qualquer espécie. Quando ouvi esta história desesperei-me por não ter interrogado melhor a minha avó que sabia tudo sobre estas querelas.
Tudo isto para explicar o meu interesse na velhada (de que já vou fazendo parte) e de como muitos deles são testemunhas vivas de um mundo desaparecido ou a desaparecer. Boa parte das toliçadas agora perpetradas por diferentes políticos seriam evitadas se houvesse alguém que lhes lembrasse exemplos passados mas não tão longínquos.
Entretanto, e agora, são os velhos quem mais pena e que, curiosamente ou não, quem percebeu melhor a pandemia e quem se está a defender melhor nestas segunda e terceira vagas. Perceberam que com ou sem Ramos eram eles que tinham de se proteger à falta de protecção devida mas incerta dos que detém o poder de vacinar ou não os mais frágeis.
*ma vinheta: capa do çovro de Caldas Xavier citado no texto. eu vem queria pôe uma imagem da revolta mas devo ser um nabo nisto de andar à pesca na internet .
PS o leitor que me lê pela manhã pode ter perdido a serie "o jovem montalbano" qie passa hoje, domingo , na 2 pelas 18.15.