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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 550

d'oliveira, 21.02.21

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Os dias da peste 183

A loira C G e os não racistas

mcr, 21 de Fevereir

 

 

Fui “cabide” da República dos 1000-y-onarius no ano de 1961. Começou tudo por uma forte amizade com alguns dos repúblicos (todos de angola, mulatos quase todos, e todos desaparecidos no ano de 62 na famosa fuga dos 100 angolanos -por acaso também havia moçambicanos nessa leva, mas de facto eram quase todos de Angola). Eu era amigo de uma grande parte desses patriotas que “abriram” (ou como dizia o Orlando Rodrigues, "Raposo", também prófugo, que “lancetaram”) rumo à europa e às frentes de luta anti-coloniais.

Com alguns estive até ao último momento (o Chpenda, por exemplo) e sabia o que se estava a passar. Até me convidaram para ir conhecer “outras terras outras gentes” (adivinhem de quem é a expressão) mas eu, mesmo amando África, sentia-me “metropolitano” até ao umbigo. Durante anos, dei as ajudas necessárias, convivi com os que ainda cá ficaram ou cá chegaram depois e, já as independências eram um facto, fui convocado para ajudar em várias circunstâncias que alguma vez relatarei se me der para a autobiografia.

Desta feita, contudo, não é de mim que vou escrever mas da CG (que conheci muitos e muitos anos depois de sair de Coimbra).

A CG descobriu Angola, melhor dizendo Luanda e arredores, quando chegou ao liceu Salvador Correia de Sá. Aí penou os sete anos de pastora e rumou a Coimbra. Quase no fim do curso, deu-se o 25 A e, entusiasmada, entendeu rumar a Angola (a convite de Agostinho Neto de quem se tornaria uma das secretárias). Em Luanda, portanto, frequentou os meios nacionalistas pré independência formal e, porque loira e jovem, deu nas vistas. Tanto ou tão pouco que a Unita ou o a Upa, tanto faz, entenderam pôr a cabecinha dela a prémio. Quando recorreu aos seus amigos do MPLA descobriu que a extrema brancura da pele, os cabelos loios e o cargo de confiança não bastavam. Antes convocavam desconfianças e animosidade. Ao fim e ao cabo era uma “branquelas” a roubar o lugar a uma “africana” mulata ou negra de preferência.

Vendo o cerco apertar-se, recorreu a familiares ainda em Angola e com uma enorme peruca negra conseguiu embarcar num avião para Portugal. Uma aventura qu, além de perigosa, lhe deixou amargos de boca visto que nenhum dos seus amigos africanos a pode socorrer.

Ainda hoje, aparecem alguns, outros dão notícias, mas ela que fez toda a sua vida posterior cá ainda lamenta a falta de solidariedade, o medo e a cobardia de quem a poderia e deveria ter defendido e não o fez por medo ou oportunismo.

Como ela, muitos outros, brancos (o caso mais evidente é o de Costa Silva que ainda recentemente contou a sua odisseia desde a luta clandestina até um infecto buraco numa prisão angolana depois da independência), perderam as ilusões que alguma vez teriam tido numa pátria africana onde nasceram ou cresceram mas sempre entenderam sua.

O seu crime? Serem brancos, cor malvada a lembrar a humilhação de séculos.

Segundo uma pobre criatura que provavelmente nunca pôs o mimoso pé branco em África, isto não é racismo porque “os negros não são racistas”. Se o diabo da mulher tivesse dito que nem todos os negros (ou nem todos os brancos, ou nem todos os amarelos) são racistas não seria eu a saír~lhe ao caminho.Mas ela, coitada, nem isso discerniu e não sou eu quem agora a vá ilustrar que tenho mais e melhor que fazer. 

Até porque, tendo conhecido muitos (uma pequena multidão) de responsáveis políticos africanos, quase todos amigos certos, sei que assim é. Curiosamente, alguns até me preveniram das dificuldades em regressar, ainda que por mero turismo, a Moçambique do que me esperaria se me metesse a opinar politicamente sobre a situação.

Preferi, concentrar as possibilidades de ajudar noutras latitudes igualmente africanas, mesmo se ainda há meia dúzia de anos tenha colaborado numa edição em Lourenço Marques. Em boa verdade, limitei-me a prescindir de direitos de autor e em troca recebi o livro em causa numa edição quase artesanal que muito estimei. Com outros (muitos) europeus financio projectos educativos e patrimoniais em África, evidentemente que eu não esqueço aqueles cheiros, aquela terra, aquele sol e aqueles mares. E aquelas gentes com que contactei e cujas línguas tentei aprender mesmo se nunca passasse das meras trivialidades do dia a dia. 

E, egoisticamente, fui constituindo ao longo dos anos uma boa biblioteca africana (já com alguns milhares de livros) onde tento salvar de exportação para os Estados Unidos, edições portuguesas (e não só) que cá carecem de protecção. Parece que o Estado se contenta em ter na Biblioteca Nacional um exemplar único do que em cento e sessenta anos se foi publicando sobre África.

Assim se constrói a desmemória histórica e se contribui para o crescente acervo de burrices e falsidades sobre uma história cheia de altos e baixos, de luzes e sombras que merecia ser melhor conhecida para separar o trigo do joio e as senhoras tontas das pessoas sensatas.  

*na vinheta: parte das estantes sobre África(neste caso são  sobre colónias portuguesas As estantes do fundo - com esculturas africanas em cima - são fundamental mente sobre literatura africana lusófona e francesa.