estes dias que passam 551
Os dias da peste 184
É a História, estúpido!
mcr, 22 de Fevereiro
Não fui à guerra. Nem sempre tive sorte, bem pelo contrário, mas quando fui às “sortes”(em Janeiro de 61, poucas semanas antes do levantamento de Lunda) tive a sorte de ser inspeccionado por um conhecido meu, angolano, que ao ver-me magro, inerme e nu me perguntou num murmúrio se eu queria ser oficial do Exército. Assegurei-lhe em voz ainda mais baixa que não me apetecia um destino guerreiro mesmo se, naquela altura nada fizesse pensar no “para Angola e em força”.
Isto passava-se num DRM coimbrão, instalado num dos antigos “colégios universitários” mandados edificar por D João III na rua por ele crismada da Sofia.
A sala era imensa e ao fundo estavam três cavalheiros militares enquanto nós, o médico inspector e o “mancebo” (eu) estávamos quase na outra ponta.
(Ainda hoje me pergunto se o meu amigo médico miliciano e angolano já saberia de algo.)
De todo o modo, a minha imprestável figura já prefigurava alguém muito pouco guerreiro. Magro, magríssimo, nem sessenta quilos pesava. Um pobre metro e setenta de altura que nu, mesmo ao longe deveria parecer coisa pouco credível para oficial miliciano.
O médico, à cautela deu-me mais cinco centímetros, tirou-me outros tantos à largura do peito e no fim o meu índice de Pignet (será assim que se escreve) berrado para a mesa dos três oficiais garantia que eu era inapto para a tropa.
À saída, já vestido, recusei mesmo comprar a fitinha branca dos inaptos (os “apurados” tinham direito a fitinha vermelha que muitos pregavam na lapela orgulhosos) arguindo que era apenas um civil, um paisano com direito a caderneta militar e obrigação de pagar 60$oo anuis durante cerca de vinte anos. À época, isto correspondia a 60 jornais diários, a 40 bicas ou, em Coimbra a cerca de 9 bilhetes de cinema.
Com o passar do tempo, comecei a pagar a taxa militar só no fim do ano, com multa por temer ser reinspeccionado como ocorreu com muita gente, mormente médicos.
Portanto, não fiz a guerra colonial. Ou fi-la de outra maneira nas prisões do regime e, já nos anos 70, a “passar” desertores para o lado de lá. Pelo meio ainda fui sendo suspeitado de “simpatia activa” com “terroristas” africanos mas nem a polícia nem os seus muitos e prestimosos informadores conseguiram tornar mais clara essa alegada simpatia que, de facto, era verdadeira e, algumas vezes, activa.
Por exemplo: durante a campanha eleitoral de 69 descobri e entreguei ao Aníbal Almeida alguns documentos importantes, entre eles a troca de correspondência entre o Governo de Macau e os responsáveis chineses da província vizinha que exigiram e obtiveram patéticos pedidos de desculpa portugueses – ao mais alto nível!- pelas tropelias exercidas contra uns chineses mais apressados em fazer Macau regressar ao Celeste Império maoísta e revolucionariamente cultural.
(cfr Almeida, Aníbal: “Sobre o Ultramar, fascismo e guerra colonial”, Centelha, Coimbra, 1974” cuja capa é a vinheta de hoje).
Antes de sair em livro, boa parte do conteúdo deste livro fez parte dum gordo panfleto editado pela CDE de Coimbra durante o período eleitoral de 1969.
Por isso mesmo, nunca me arrependi de ter feito a minha guerra de África “cá dentro” e posso, sem falsas modéstias, dizer que também arrisquei o meu bocado.
A guerra colonial, de África ou colonial durou uma dúzia de anos e mobilizou pelo menos um milhão de portugueses para já não falar das tropas negras que a “africanização” da contenda lançou nos campos de batalha. Os comandos africanos, os “flechas” e outras forças militares e para-militares foram actores numa guerra em três frentes de contornos imprecisos muito de contra-guerrilha.
Quem ia para África, e foram quase todos, uns por dever outros por não terem alternativa ou desconhecerem a possibilidade de exílio, quase sempre reservada a uma pequena elite universitária, sabia que na maior parte das vezes, na imensidão da mata a coisa era simples: matar ou morrer. E, sobretudo nos primeiros tempos, em Angola, no Norte os soldados portugueses depararam-se com cenas medonhas de mortos brancos e negros, de mulheres, homens e crianças, vitimados pela UPA. As descrições do que viram, de como reagiram são horrendas. A guerra não é para almas delicadas nem para especial respeito pelos direitos humanos. Nunca foi, nunca será. Não vou chamar à colação a 2ª guerra mundial, a bestialidade nazi, a vingança russa, ostráficos da ocupação de Itália da França ou da Alemanha, os mortos de Katin, ou a inenarrável violência japonesa. Nem sequer vale a pena relembrar guerras mais próximas, seja no Vietnam, no Cambodja, na Nigéria ou a guerra larvar no centro de África.
A guerra colonial não poupou ninguém e poucos serão os que conseguiram sair daqueles dois/três anos sem um peso na consciência.
Dir-se-á que toda a gente sabe disso. Falso! Não sabem. Pior: não querem saber. A História oficial atira para meia dúzia de criaturas todo o imenso horror, as chacinas cometidas.
Tenho a clara ideia de que poucos, quase nenhuns, dos oficiais que fizeram anos a fio a guerra, conseguiram sempre respeitar e, mais e mais importante, fazer respeitar as convenções de Genebra e todas as restantes disposições que pretendem regulamentar a violência guerreira.
Que essa dramática experiência tenha levado muitos à conspiração e ao 25 A não é segredo para ninguém. Que, uma vez a paz alcançada, se tenha tentado varrer para baixo do tapete muita da porcaria é evidente. E isto serve para todos os contendores: portugueses, guineenses, angolanos ou moçambicanos. A guerra, sabe-se como começa, jamais como acaba.
Por isso, e por várias vezes, já aqui escrevi que este conflito que marcou não só os combatentes, como as famílias, os amigos merece ser tratado com verdade, com respeito com decência. São os mortos, todos os mortos, que o exigem.
E os civis que cá estavam, que cá ficaram a salvo não podem, nem devem, armar-se em juízes, muito menos em acusadores.
E, muito menos ainda, esses acéfalos activistas que como o touro só vem à frente a mancha vermelha e cuidam que é um inimigo a quem devem cornear.
A questão Marcelino da Mata tem sido alvo de uma infame acusação racista. Fosse ele branco e ninguém falaria. Mas era preto. E um preto há de por força não combater os pretos!
Ora, e basta ver o que desde 1961 (e antes) se passou em África para perceber que os pretos combatem outros pretos e, muitas vezes, por motivos absolutamente raciais (no Sudão ou nos confins da RDC) por causas religiosas (na Somália, no Mali, no Níger, na Nigéria) por diferenças políticas e etnicas (Angola e Moçambique), por todos estes motivos em variadíssimos outros lugares africanos.
Mas, cá. O que está a dar é o Marcelino da Mata que sempre se julgou português. E como tem uma chuva de altas condecorações, esconde atrás delas umas largas dezenas de milhares (ou centenas, nem sei) de outros negros africanas que lutaram ao lado dos “tugas”.
Que agora, um que outro auto proclamado dirigente de Abril venha falar grosso sobre os crimes de guerra é extraordinário! E bom seria averiguar se o seu passado militar é assim tão sem mácula, tão inocente, tão cheio de amor pelo colonizado que se levantava contra ele. Se nunca colaborou com a pide colonial que era quem depois se encarregava da informação a extorquir aos prisioneiros. E, sobretudo, se durante tantos anos, não colaborou com o regime que finalmente se dispôs a eliminar depois de perceber que a guerra não tinha solução à vista.
A guerra colonial fez muitas vítimas. Uns milhares escassos de militares “portugueses” (brancos), muitos mais militares negros. Alguns milhares de civis brancos no Norte de Angola, muitas dezenas de milhares de civis negros vítimas não só do Exército Colonial como também da guerrilha que não pactuava com quaisquer mostras de simpatia pelo colonizador e desconfiava, com ou sem razão, das populações que não se revoltavam contra a tropa portuguesa.
Durante treze anos ouvi descrições da guerra. Algumas vezes (três) fiz férias grandes – enormes, de vários meses, graças à faculdade de atrasar os exames de Outubro para Janeiro- em Nampula, já perto (uns centos de quilómetros) da frente de combate. Vi chegar feridos e sobretudo, muitos soldados com fortes traumas emocionais. O meu querido amigo João Cabral, médico e miliciano suicidou-se em Angola. O Fernando Assis Pacheco, deixou uma mão cheia de versos belíssimos onde a sombra temível da morte e da guerra estão presentes. Ele próprio baixou ao hospital por já não aguentar o que via. Outros e muitos, ainda vivos – e por isso não menciono os seus nomes- falavam-me do que se passava quando vinham de licença. Então os que estavam nos quartéis isolados na Guiné contavam coisas tremendas, falavam do medo incessante, dos ataques repentinos, uma morteirada hoje, uma emboscada dias depois. E, muitos anos depois ainda se arrepiavam.
Eu, depois disso, nunca mais me julguei capaz de julgar, menos ainda de comparar a minha extraordinária sorte com a sorte deles. Mesmo com prisões, com “estátua”, com “sono” com o medo de ser apanhado nada, mesmo nada se compara com o que imagino que eles passaram. E não me atrevo sequer a pensar o que faria no lugar deles...
Deixo essa sinistra tarefa aos fundibulários de hoje. Que lhes aproveite!
Convem acrecentar que a personagem Marcelino da Mata não me suscita qualquer simpatia especial. E se o chamo a este texto é justamente por me parecer que contra ele corre um forte sentimento racista porque preto e porque soldado português. e, já agora, ainda ninguém me apontou nenhum dos famigerados crimes de guerra dele. compete a quem acusa o ónus da prova. ele, já não está cá para se defender e, pelos vistos em vida sua ninguém concretizou quaisquer acusações. Será porque tinham medo do que ele poderia alegar em sua defesa?