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Os dias da peste 190
“feminismo e feminismos”
mcr, 1 de Março
Há assuntos que me chamam a a atenção mas em que só pego com pinças. Ou porque não são a “minha praia” ou porque para evitar interpretações apressadas (coisa que está muito na moda da discussão em Portugal) teria de escrever muito mais do que um simples folhetim que se dedica sobretudo a tentar passar o tempo de confinamento obrigatório.
Todavia, um artigo publicado hoje no “Público” permite-se abordar, ainda que obliquamente, o tema do feminismo porquanto uma senhora socióloga concede uma longa entrevista sobre o tema.
Com um título pomposo: ”A ditadura (salazarista) tinha uma ideologia fortíssima que nunca foi posta em causa”
Claro que os títulos são da responsabilidade de quem entrevista, ou do editor e, portanto, não posso sem mais atribuir este à entrevistada.
Em boa verdade ela acrescenta que a democracia (leia-se depois do 25 A) nunca pôs em causa a herança “salazarista”.
Eu nunca tive qualquer espécie de simpatia pelo cavalheiro de Santa Comba Dão mas quando vejo que tudo lhe atiram para cima, fico irritado.
A História, sempre ela, mostra à saciedade que neste capítulo o dr. Salazar apenas seguia um forte tradição ideológica, ética, cultural e política com longos, longuíssimos antecedentes.
Em termos de política em relação às mulheres até, por ironia (e por respeito pela verdade) se pode dizer que foi ele, o ditador, quem, ao contrário da 1ª República, concedeu (limitados) direitos de voto às mulheres fazendo eleger meia dúzia de fervorosas partidárias suas para a Assembleia Nacional. Contrariamente, o anterior regime dito “democrático” não só proibia o direito de voto das mulheres mas, no único caso em que uma mulher, médica e chefe de família, votou numa eleição foi o congresso que solenemente lhe anulou o voto entretanto entrado em urna depois de um tribunal ter entendido que ela tinha direito a votar. Um lei de 1913 veio esclarecer que o direito de voto incumbia apenas aos varões. Está tudo dito.
Portanto, o velho e manhoso ditador (que na altura ainda era novo mas hábil) mereceria que, pelo menos, se lhe reconhecesse este avanço dos direitos das mulheres que bem lhe pagaram em cartas, milhares de cartas apaixonadas e em votos leais sempre que houve uma patética imitação de eleições parlamentares.
Recordo que, na Academia coimbrã, o voto para a direcção da Associação Académica só foi “concedido” às mulheres já em fins de quarenta. Por uma Direcção Geral democrática (ou republicana como então se dizia). O resultado foi surpreendente. Até à eleição de Carlos Candal (1960) nunca mais a “esquerda”, os “democratas”, os “do contra” ganharam eleições. As raparigas votavam em formação cerrada na “situação”.
Quando cheguei a Coimbra ainda persistia esta fidelidade feminina à causa da “reacção”. Nas Assembleias Magnas, eternizavam-se as discussões para esperar que os batalhões femininos vindos dos lares tivessem ordem de marcha. Logo que as raparigas partiam, era um ver se te avias de votações onde, mesmo assim, a nossa margem de êxito era curta.
E estou, que me desculpe a senhora socióloga, a falar de uma elite educada, de futuras médicas, professoras, farmacêuticas, engenheiras ou advogadas!
Curiosamente, como venho de Buarcos, terra de pescadores, sempre vi as mulheres assumirem o governo da casa. Ou porque os homens estavam no mar durante meses (os do bacalhau) ou porque, mesmo vindo para casa todos os dias, era a mulher que tinha de se desenvencilhar. Um dos meus tios por afinidade, filho de pescador e professor do ensino secundário, ainda entregava à mulher o seu ordenado na íntegra, ficando apenas com o do o café e do tabaco. Era a minha tia quem governava as finanças da casa. Mesmo que eu suspeite que o meu tio (uma criatura excelente e um homem cultíssimo) o fazia para não ter trabalho, a verdade é que as coisas eram assim mesmo. Havia também o álibi dele ser doente do coração mas convenhamos...
Sobrevivente que sou dessa época tenho bem presente a enorme mudança que a guerra trouxe à sociedade portuguesa no domínio da feminização de grande número de profissões, mormente as industriais. Como a socióloga reconhece, a guerra mobilizou para a frente interna do trabalho dezenas ou centenas de milhares de mulheres que substituíram os soldados e os emigrantes que abandonaram o país para ir buscar melhor vida na Europa. E também eles eram uma multidão imensa, primeiro os homens, depois, anos depois, com os maridos já precariamente instalados, as mulheres e os filhos.
Esta dupla falta de braços masculinos teve outra e boa consequência. As condições de trabalho, sobretudo a remuneração melhoraram mesmo se isso se obtivesse, e não poucas vezes, com movimentos reivindicativos. Digamos que as mulheres trabalhadoras portuguesas no espaço de uma geração (ou em menos, até) entraram no mercado do trabalho e adquiriram alguma consciência política.
Curiosamente, também as lutas estudantis, as crises de 62 sobretudo a de 69 em Coimbra despertaram para a trincheira dos direitos democráticas cada vez mais mulheres. É minha íntima convicção , e não me canso de o dizer que metade, pelo menos, da responsabilidade pela luta vitoriosa de Coimbra se deveu às raparigas.
Nove anos de direcções democráticas da AAC e, também – e muito! – o forte afluxo de raparigas à universidade transformaram quase radicalmente a situação. Tudo isto sem esquecer a situação política nacional e internacional, a crescente informação e as movimentações de jovens na América e na Europa.
Todavia, como a senhora socióloga sugere, nem assim se fechou o fosso de desigualdade de género que ainda hoje é visível na clara diferença de remuneração a que se assiste em variados sectores. Ou na divisão do trabalho doméstico.
Mas também aqui não é contra quarenta anos de “noite fascista” que se luta mas sim contra vários séculos de existência como país, contra costumes ancorados, enraizados fortemente e que se reproduzem também devido às mães dos senhoritos que por aí medram viçosos.
E, presumo eu que nisto já vi muito, a coisa está para durar. Mas, também é verdade, que o caminho, como dizia Machado, se faz caminhando.
Citando, também obliquamente, a actual prémio Nobel da literatura, Louise Glûck
Não posso continuar
a limitar-me a imagens
Só porque pensais que tendes direito
a contestar o que quero dizer
Estou finalmente preparada para impor
entre vós a claridade
A VINHETA: EU QUERIA PÔR UMA FOTOGRAFIA DA FERNANDA DA BERNRDA, DIRIGENTE DA AAC EM 1969 , MUINHA AMIFA E MINHA EX-SÓCIA DE ESCRITÓRIO DE ADVOGADOS. RAZÕES QUE DESCONHEÇO LIMPARAM-LHE A IMAGEM DA INTERNET, OU ENTÃO SOU EU QUE SOU UM NABO.
DE TODO O MODO, ESTE TEXTO VAI-LHE DEDICADO E, AO MESMO TEMPO, A TODAS AS RAPARIGAS DE 69 EM COIMBRA. YINHAM TUDO, JUVENTUDE, CORAGEM, INTELIG^NCIA, BELEZA E ENTUSIASMO. SEI DO QUE FALO POIS CASEI COM UMA DELAS, SOU AMIFO DE MUITAS E CONRINUO PERDIDO DE ADMIRAÇÃO POR TODAS
(DESCULPEM AS MAIUSCULAS MAS DEVO TER FEITO UMA ASNEIRA E NÃO CONSIFO DESFAZÊ-LA.)