estes dias que passam 581
Saída precária 10
Vírus irónico; efeméride
mcr, 24 de Março
A CG usa com desenvoltura as redes sociais, coisa em que nem me atrevo a meter o pé andarilho. Mas ela diverte-se como um cabinda, tem grupos das mais diversas origens com especial menção para os protectores de animais, amigos dos gatos e tricotadeiras. De vez em quando acode-me com notícias surpreendentes mas esta é de antologia. Parece que um dos organizadores da manifestação contra as medidas anti-covid, ajuntamento que acabou no Rossio com os manifestantes ao molho e de cara descoberta, está infectado. Eis como um pobre imbecil (ou uma, que eu não sou sexista) apanha com a conspiração pela cabeça abaixo sem dizer água vai. É claro que a tresloucada criatura pode sempre dizer que não, que é sarampo, cólera morbus, malária ou ataque gigantesco de traques. Como, na generalidade, aquilo parecia ser uma reunião de estudantes para festejar a queima (das máscaras) a infecção poderá ser chata mas deve ser benigna, uns dias, algumas semanas com febre, cansaço e dificuldades em respirar e eis que a personagem sai do hospital ou de casa pronto a combater nova conspiração. Os leitores e leitoras repararam que eu não lhe desejei a morte ou consequências severas de que também há notícia. Apenas um susto, algumas chatices menores e pronto, pronto para outra...
Da doença salva-se mas não da estupidez, o que já deve ser forte castigo se é que ele/a a nota. Normalmente não notam e passeiam-se por aí inchados de ideias novas sobre os mistérios do mundo.
Há 59 anos, uma vida, rumei com mais colegas de Coimbra, directo a Lisboa. Fomos de comboio, no mais baratinho que havia, embrulhados nas capas e batinas. Já muito perto de Lisboa, alguém achou que devíamos mudar de comboio e tomámos outro que nos levou a Entrecampos. Em boa hora o fizemos porque em Santa Apolónia tínhamos à nossa espera um piquete da polícia de choque. Da estação para a cidade universitária é um pulo e num pulo chegámos ao Estádio Universitário onde umas centenas, largas centenas, de estudantes lisboetas iam sendo empurrados de um lado para o outro por polícias. Com uma que outra bastonada à mistura, só para dar luz e som à coisa.
É claro que fomos recebidos por uma gritaria ensurdecedora e entusiasmada “É a malta de Coimbra!", uivava uma jeitosa que distribuiu pela vaga centena de recém-chegados, embiocados de negro, fitas e grelos ao vento, beijinhos de boas vindas. “Vê-se que as miúdas de Lisboa são outra coisa” advertiu-me entusiasmado um colega dos jogos de matraquilhos. Concordei e recebi prazenteiramente o meu beijinho. “Um abracinho também era bem vindo” pensei para comigo próprio. Mas não, apanhei a beijoca número trinta e dois (ou três, tanto dá) e marchei com a restante comitiva para a frente da polícia que nem acreditava no quão tansos eram os estudantes de Coimbra. E vá de levar sarrafada, claro. A coisa amainou, houve umas discursatas, alguém avisou que o Reitor (Marcelo Caetano) estava a tentar compor as coisas e, às tantas soube-se que toda aquela matula, engrossada por mais uma ou duas levas de Coimbra que tinham misteriosamente furado o bloqueio, começou a desandar para um “restaurante Castanheira” onde se comeria à pala do Magnífico Reitor. No Campo Grande, porém, a polícia entendeu que aquilo era de mais e começou a arrear na rapaziada e na raparigada, forte e feio. “Porra!, disse-me o Parcídio Sumavielle,” isto parece justiça de Fafe”. Os Sumavielle são todos de Fafe e atrevidos. Bem se diz que “com Fafe ninguém fanfa!”. E lá começamos a apanhar nos lombos com as bastonadas policiais. Como aperitivo para jantar comemorativo já vi melhor mas, ao longo de muitos anos de manifs até vi pior. Não houve jantar, evidentemente. Mas a malta de Lisboaera do melhor que há´e em pequenos, pequeníssimos, grupos adoptaram os de Coimbra e toda a gente, com os lombos aquecidos, e de que maneira, lá terá jantado, aqui e ali. Os meus guias levaram-me para o CUJ, Clube Universitário de Jazz, e passámos uma excelente noite que continuou num apartamento já não sei de quem onde cantámos todas as cantigas subversivas que sabíamos e as misturamos com baladas de Coimbra e cantigas dos Açores (estou em crer que algum dos meus amigos da república “corsários das Ilhas” estaria nessa celebração...) No dia seguinte, sempre embiocado na capa e batina (que remédio não levava nenhuma muda de roupa de fora) fui com os meus hospedeiros para a faculdade de Medicina onde havia uma reunião. A polícia invadiu o local e o célebre (na época) capitão Maltez deu cinc minutos para dispersar senão... Eu, com uma presença de espírito que era mais toleima que outra coisa, apontei para as minhas vestes e de mais alguns entretanto aparecidos, e terei dito que seríamos sempre reconhecidos e “enchousados” de porrada. O dito Maltez armou-se em cavalheiro e deu ordem aos energúmenos que comandava para não tocarem nos “rapazes” de Coimbra.
Horas depois regressávamos a Coimbra, doridos mas entusiasmados e jurando vinganças tremendas. Pela minha parte, dois meses depois, estreei “as minhas prisões” (Sílvio Pélico que me perdoe a ousadia) e fui fazer um retiro em Caxias com mais quarenta e três companheiros (entre eles quatro raparigas) que comigo e mais cento cinquenta felizardos e felizardas que escaparam entre as malhas da rede, ocuparam, pela 2ª vez, a sede da Associação Académica, fechada pela reitoria e pela polícia mancomunadas como de costume.
E é aos “40 caxos e 4 uvas” que dedico este folhetim. Muitos já não andam por aí a expor-se ao vírus e à burrice dominante mas eu recordo-os todos os dias
Em memória de Abílio Vieira, Alfredo Soveral Martins, Alfredo Fernandes Martins, Carlos Mac-Mahon, José Martins Baptista, José Augusto Rocha, Francisco Delgado, José Monteiro (“bagacinho”), Irene Namorado, Jorge Bretão, João Quintela, Luís Bagulho, Mário Silva, esperando fervorosamente que esta lista não tenha aumentado
(além destas prisões, houve, em Coimbra, 32 estudantes punidos com medidas de expulsão da universidade ou de todas as universidades nacionais. Proporcionalmente ao número de alunos verifica-se que Coimbra foi a academia mais penalizada. Entre eles, já que citei Fafe, terra onde nunca fui, estavam os dois irmãos Sumavielle, Parcídio e o Zé, o mais velho, que, na altura, era membro da Direcção Geral da AAC )