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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

estes dias que passam 594

d'oliveira, 08.04.21

 

 

 Liberdade condicional 4 

Jorge

mcr, 8 de Março

 

O velório foi ontem, a cremação será hoje. Tudo quase clandestinamente como quase clandestina é a vida que vivemos. A Isabel está desfeita, os filhos, subitamente órfãos não tem amigos velhos a abraçá-los, os netos ficam sem um avô e a família sem um patriarca. 

Falo do Jorge Baldaia, claro, um amigo desde finais de sessenta quando apareceu pela mão do Zé, irmão mais novo, igualmente amigo numas férias algarvias.  Da guerra, o Jorge trazia as marcas fundas da mata densa da Guiné, dos itinerários armadilhados, das noites sem dormir, dos ataques solitários de um par de guerrilheiros que apontavam o morteiro e pumba, explosão no quartel praticamente sitiado. 

Como tantos outros a guerra interrompeu-lhe tudo, a vida, os estudos universitários, algum amorio. E trouxera-lhe o pesadelo, o medo, a angústia, a contagem lenta, lentíssima dos dias no meio de nada com um grupo de soldados a seu cargo que só nele e na sua frágil união tinham algum magro apoio. 

Disto, já não se fala, ou melhor falam uns pobres diabos que nunca viram a guerra, menos ainda a viveram, que, as mais das vezes nem deram por ela por demasiado pequenos ou nem isso. 

O Jorge, dizia eu, apareceu na nossa praia, aliviado por estar vivo, ocupado em deixar fechar as cicatrizes e resolvido a fazer a vida. A universidade (como a tntos outros já não lhe dizia nada. Era passado, um passado morto em África. 

E fez-se à vida, juntando-se ao pai pequeníssimo industrial de redes e arames. Disso dessa empresa de garagem, viria a fazer uma próspera fábrica, uma empresa relativamente grande, conquistando mercados após mercados com a sua extraordinária competência, com a sua inabalável resolução, como se quisesse  provar que a vida depois do ensaio da não vida, da morte miserável numa selva, ao serviço de coisa nenhuma, podia e valia a pena ser vivida.

E encontrou a Isabel, minha amiga dos mesmos anos, minha companheira de todas as lutas estudantis, colega de curso e parceira no teatro universitário. Fomos ambos eleitos para a Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra no ano seguinte ao da crise.  A Isabel era uma força da natureza, vinha do litoral áspero da Nazaré, do mar traidor que ainda não tinha o canhão dos surfistas. A Isabel não tinha, não tem, papas na língua nem se lhe apertava o coração à vista da polícia. E foi por breve tempo, minha sócia num escritório de advogados todos vindos do mesmo molde, das mesmas aventuras e partilhando os mesmos, ou quase, sonhos. 

Casaram-se, claro. E tiveram filhos. Da mais velha, quase uma espécie de afilhada, tive durante anos, numa estante, uma fotografia que só saiu de lá quando o sol, ou a luz simples do dia, sei lá começou tornar menos visível a imagem. Da Joana conheci-lhe os filhos, a dois dei colo, o colo possível e inábil de homem sem filhos.

E com o Jorge ia conversando, de longe em longe, admirando-lhe a calma, a bonomia, o humor discreto e o sorriso aberto. E, claro está, o desembaraço para os negócios, para a vida de industrial. E, é bom relembra-lo, a capacidade que tinha de fazer amigos, de ser fiel a eles, de ser um excelente patrão que, na pequena terra levava a bandeira de um partido, o PC, enfim a habitual coligação eleitoral autárquica, de que ele era um compagnon de route. Numa terra do go norte profundo, num concelho onde o PPD era rei, a pequena freguesia desafiava a Câmara, conseguia colaborar com ela, ser respeitada. S Jorge não espadeirava o dragão antes lhe falava calma mas resolutamente e o milagre acontecia. 

Morre agora de cancro maligno e doloroso, desenganado pelos médicos e mandado para casa para morrer entre os seus. Nós, os amigos choramo-lo de lonfe, que os tempos infames do vírus não permitem um encontro fraterno, a companhia consoladora, o abraço, o pequeno caminhar para a terra que a todos receberá. 

A última vez que o vi foi no enterro da Fernanda da Bernarda, amiga nossa e dirigente estudantil na crise de 69. Nada fazia prever, nunca nada faz prever, esta súbita ausência.

Algum dia, mais tarde, nos juntaremos a lembrá-lo com carinho, com alegria. Que não demore muito  para bem de todos e porque a idade já não permite planos a longo prazo. 

 

Morreu, também, Jorge Coelho um político que soube, no momento certo, declarar que “a culpa não pode morrer solteira” e se demitiu devido à queda de uma ponte que levou com ela cinquenta almas que vinham de uma excursão. Nunca o conheci pessoalmente mas esse gesto, num país e numa época em que os gestos são mesquinhos, enobrece-o a meus olhos. Os jornais e a televisão seguramente  trarão elogios vindos de todo o lado, até, os mais estridentes, de adversários. É o costume. Jorge Coelho foi um dos maiores apoios de Guterres, um militante poderoso, um organizador competente e um porta voz por vezes façanhudo. Alguns até falam em carisma. Francamente! Coelho era inteligente, esforçado, rápido e dialogante (pelo menos dentro do partido). Mas o carisma é outra coisa. Carisma era o que distinguia Soares, Sá Carneiro ou Cunhal. Carisma não é popularidade nem milhões de selfies, beijinhos às criancinhas, , muita palavra enviesada por vezes.  Coelho era simpático, fez um bom elemento na quadratura do círculo, de longe o melhor que o PS lá teve, foi um quadro capaz e arrojado numa grande empresa e foi, diz-se, um bom patrão para uma dúzia de queijeiras que também terão os seus méritos pois há notícia de uma medalha de prata. Em queijo da Serra, uma medalha de prata diz muito.

 Sessenta e seis anos não é, nos dias que correm, covid excluído, uma idade avançada. Todavia, a morte, ri-se das idades, dos estatutos, das origens . E mata democraticamente. 

Assim partem dois Jorges como terão partido, ontem, muitos outros. Que a terra lhes seja leve e os descendentes saibam ser dignos deles.        

 

 

 

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