estes dias que passam 667
A vez dos russos
mcr, 16-03-22
Da Finlândia à Turquia, da Arménia à Geórgia, sem falar nos satélites asiáticos mas que, de momento, parecem abrigos razoáveis, há uma diáspora russa, de elite, jovem e altamente educada que já abandonou o seu país. Fogem de uma eventual lei marcial, da falta de muitos produtos, em protesto contra a guerra e conta o cerceamento cada vez maior das liberdades mais óbvias.Estimando por baixo terão sido cerca de cem mil os que entretanto partiram. Metade terá usado a fronteira finlandesa, um quinto a Geórgia , oa aviões para Istambul estão desde há vários dias completamente lotados.
A recepção destes deslocados pela guerra não é especialmente simpática, sobretudo na Geórgia, et pour cause1 Os georgianos ainda recordam as “intervenções especiais” que lhes retiraram a Abkásia e a Ossétia do Sul. Pelos vistos muitos senhorios recusam arrendar casas a russos mesmo quando estes estão dispostos a pagar bem.
No resto da Europa, o sentimento anti-russo aumenta inclusive contra russos que já lá viviam há muitos anos. Efeitos conjugados da memória da guerra fria e da acção de Putin e da clique governante russa. Também, neste capítulo, o erro de apreciação terá sido colossal e ninguém percebe como é que nenhum dos numerosos serviços de “inteligência” russos não previu estas reacções. Claro que num regime autocrático, o autismo das chefias contamina tudo. O medo de desagradar idem, aspas, aspas.
Sabe-se isto, desde, pelo menos, os tempos da segunda guerra mundial. Nenhum general alemão se atrevia a contrariar Hitler que, até ao fim da guerra, numa Berlim cercada, ainda mandava avançar exércitos inexistentes para a frente de batalha. E ninguém, sequer os companheiros da primeira hora se atrevia a avisar que essas tropas não existiam. Aliás, a tradição de ouvir e calar vinha de longe, do tempo em que as vitórias a ocidente (graças ao facto de não se temer um ataque de leste devido ao ignominioso pacto com a URSS. A operação Barba Ruiva começou tardiamente contra a opinião de especialista que temiam o “general Inverno”. A isso Hitler terá contraposto com a garantia de que em escassas semanas teria a invasão bem sucedida, Moscovo, Leningrado e Stalingrado conquistadas, os campos petrolíferos ocupados e Stalin morto ou prisioneiro E os sub-humanos escravizados. Nada disto aconteceu, como é sabido. A invasão foi parada ao centro, Leningrado resistiu ao cerco durante mil dias e Stalingrado foi o cemitério do temível 6º Exército. E um marechal (Von Paulus) aprisionado em vez de se suicidar!
Nesta guerra que presenciamos, parece que nada saiu como se previa. O “actor”, o “cómico” (como uma senhoreca universitária o referiu) agigantou-se e, pelos vistos, tem-se mostrado à altura. Vários parlamentos europeus e o canadiano ovacionaram-no de pé. Mesmo descontando o que isto tem de propagandístico, de desculpa de mau pagador, o homem está lá, não fugiu, não aceitou a boleia nem (e isso é um risco) retirou a família de Kiev.
Ontem, três primeiros ministros deslocaram-se à cidade para falar com ele. Também esses políticos, todos das ex-colónias soviéticas, é bom lembrar, arriscaram a pele, por muito segredo que guardassem. Vê-se que os serviços secretos de que Putin foi alto funcionário, são menos bons do que, à partida se esperaria.
Nada disto garante, sequer permite pensar numa vitória ucraniana. Eu, pelo menos, duvido que tal possa acontecer. Tudo faz pensar numa derrota dos invadidos mesmo que estes vendam caro a vida. Faltam-lhes as armas, o céu protegido, os mísseis, os tanques. Os exércitos russos limitam-se a cercar e a bombardear. Admito que alguns dos alvos civis não estivessem nas intenções doa atacantes mas também já se começa a verificar que a máquina de guerra russa tem fortes deficiências, usa recrutas sem experiência. A isto há quem contraponha que guerra é guerra e que todos os meios serão usados (até uma extraordinária decisão de pôr em prevenção o dispositivo nuclear. Purin poderá ser arrogante, mesmo alucinado, mas sabe que isso, o uso de armas nucleares reduziria a Rússia e quiçá o mundo a cinzas. Eu faço parte das pessoas que não o acham louco mas tão só perigoso, muito perigoso, falho de escrúpulos de qualquer ordem e mal, muito mal, aconselhado.
Há, neste momento, uma corrida contra o tempo: o resultado das sanções é demorado e o da guerra, desta guerra de agressão, pode ser mais rápido. A direcção política ucraniana está a tentar um acordo, já aceitou deixar cair a NATO, poderá deixar de reivindicar a Crimeia e aceitar perder os territórios entretanto “rebelados” graças ao apoio russo, às armas russas, aos “voluntários” russos.
O senhor marquês de Pombal, um herói de muitos portugueses (que se esqueceram do seu temível autoritarismo, da perseguição política por ele movida contra muita gente e nem sempre reaccionária) terá, certo dia, respondido a uma ameaça de um embaixador espanhol que lhe garantia ter um forte e bem apetrechado exército na fronteira pronto a entrar por Portugal adentro: “Saiba Vossa Excelência que mesmo morto um homem são precisos quatro para o tirarem de casa”
(Desconheço se a citação está corecta, isto vem da escola primária, ou mesmo se existiu tal conversa. De todo o modo “se non è vero è bene trovato”...)Todavia, e para voltar quase ao princípio, a desproporção de forças é tal que só uma enlouqucida esperança e um desmeurado sentido de justiça permitem pensar num final feliz para a Ucrânia. O mesmo é dizer para a Europa pois se Putin ganha esta vasa quererá como qualquer jogador empedernido, continuar a jogar.
É bom que nós todos, portugueses e europeus, percebamos isto. E tiremos as necessárias consequências. É a nossa liberdade que está (também) em risco.