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Incursões

Instância de Retemperação.

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estes dias que passam 680

d'oliveira, 24.04.22

Com uma vénia a Shakespeare

mcr, 24 de Abril de 2022

 

(a posição do PCP é coerente e honrada” Jerónimo Sousa)

 

 

Permita-se-me que chame à colação o dr. Álvaro Cunhal, não só por ter sido secretário geral do PCP mas também por, ao longo da sua vida ter eventualmente sido leitor de Shakespeare, ou pelo menos seu tradutor. De facto, durante um dos períodos em que esteve preso, AC traduziu o “Rei Lear” e essa traduçãoo acompanhada por desenhos seus chegou a ser publicada em fascículos por uma editora que se chamaria Scarpa. Se a tradução foi feita  partir do original ou, do francês (como na época era moda) não sei. Também desconheço se Cunhal limitou o seu conhecimento de Shakespeare a este título (de todo o modo uma das principais e mais famosas do autor)  ou se era um leitor, quiçá um admirador do notabilíssimo dramaturgo.

Tudo isto para afirmar que no caso da “operação militar especial “ russa e do entendimento que dela faz o PC, usasse o adjectivo “honrado”.

É que ao usá-lo, remeteria sempre para o extraordinário discurso de Marco António, na versão shakespeareana, claro 

Deixo no final um excerto dessa peça oratória que é um dos trechos mais citados (e eles são multidão e todos magníficos) do homem de Stratford upon Avon)

Em resumo como verificarão, Marco António, no discurso fúnebre sobre César afirma, preto no branco que Bruto mente ao acusar César parasse defender de ter sido um dos mentores do seu assassínio. E há uma repetição extraordinária da frase “mas Bruto é um homem honrado”  que funciona no texto exactamente ao contrário.

Eu, já aqui disse, que duvido que Cunhal partilhasse a inacreditável certeza opinativa do PC e seus subordinados e aliados, quanto à  “operação” criminosa da Rússia que, mesmo depois de tudo o que se tem visto, continua a acusar a Ucrânia de tudo o que a Rússia a acusa e a defender que só o diálogo leva à paz. Mesmo quando se verifica que o diálogo é impossível sobretudo se enquanto ele se realiza as bombas continuam a destruir tudo, a matar gente, sobretudo civis. 

O PC, na voz dos seus dirigentes, melhor dizendo na cassete que repete até à exaustão, continua a esquecer que há um agredido e um agressor. É verdade que jura pelas barbas de Marx, Engels e Lenin (e pelo bigode farfalhudo de Stalin..) que nada tem a ver com a “Rússia capitalista” mas apenas serve os interesses da paz e recusa “o belicismo, a xenofobia” ucranianos e mais ainda a intrínseca maldade americana, europeia e da NATO, tudo criaturas, nações, organizações interessadas em apostar na guerra mundial, ou sectorial e tudo às ordens de gente ávida que negoceia armas e é objectivamente o réu mais importante deste conflito. 

Jerónimo de Sousa parece ter esquecido o horror da guerra, ele que esteve no “ultramar” integrado no exército português que combatia as aspirações independentistas africanas. Eu desconheço (nem me interessa já) qual o seu papel nesse longo conflito. Sei apenas que, para quem enche a boca de anti-colonialismo e passa a vida a acusar tudo e todos das mais sórdidas acções contra o povo, os pobres, a paz, os trabalhadores e tudo o resto, seria bom verificar cuidadosamente se não tem telhados de vidro. 

Aliás, corrijam-me se estou errado, Jerónimo de Sousa nunca usa a palavra “invasão” e deixa no ar sempre a suspeição de que as duas partes se equivalem, como se a Ucrânia tivesse tentado ocupar Moscovo, Smolensk ou Volgogrado, como se tivesse chacinado milhares de civis indefesos e destruído casas, fábricas, escolas,  hospitais como ocorre um pouco por todo o território ucraniano.  

Há nisto matéria para não uma mas três peças de um dramaturgo da força de Shakespeare, para se poder aquilatar desta “peregrinatio ad loca infecta” (se me é permitido citar um título de Jorge de Sena). E tudo isto envolvido numa afirmação “tenho muito orgulho em ser português” (e talvez um bocadinho russo, na versão soviética, a que ocupava países, oprimia a Hungria e a Checoslováquia  para citar apenas duas realidades ocorridas já quando Jerónimo era crescidinho. Ou para retalhar a Geórgia, na época já só russa mas igualmente bestial e infame. 

Como se o PC ou quem por ele fala, fosse cego, surdo ou pelo menos vesgo. A menos que apenas estejamos perante um caso de má fé absoluta, de tentativa de enganar os tais portugueses que numa maioria assombrosa se apiedam do país agredido, se mobilizam para o ajudar de todas as maneiras possíveis, recebendo refugiados e condenando sem apelo nem agravo os vilões desta barbaridade que mansamente o PC (à imagem e semelhança do seu “irmão” russo, uma coisa que vive às ordens de Putin e que foi responsável por uma proposta de lei na Duma para reconhecer as repúblicas títeres do leste da Ucrânia, e provavelmente para propor a sua absorção pela federação russa)  é absolve dizendo por junto que é contra o regime capitalista russo.

Valerá a pena dizer, citando, que Jerónimo é um homem  honrado?

 

O nobre Bruto  contou-vos que César era ambicioso. Se ele o foi, realmente, grave falta era a sua, tendo-a César gravemente expiado. Aqui me encontro por permissão de Bruto e dos restantes — Bruto é César foi meu amigo, fiel e justo; mas Bruto disse que ele era ambicioso, e Bruto é muito honrado. César trouxe numerosos cativos para Roma, cujos resgates o tesouro encheram...

Para os gritos dos pobres tinha lágrimas. A ambição deve ser de algo mais duro. Mas Bruto disse que ele era ambicioso, e Bruto é muito honrado.

SE o vistes nas Lupercais: três vezes recusou-se a aceitar a coroa que eu lhe dava. Ambição será isso? No entretanto, Bruto disse que ele era ambicioso, sendo certo que Bruto é muito honrado. 

Contestar o nobre Bruto não pretendo; só vim dizer-vos o que sei, realmente. Todos antes o amáveis, não sem causa. Que é então que vos impede de chorá-lo? O julgamento! Foste para o meio dos brutos animais, tendo os humanos o uso perdido da razão. Perdoai-me; mas tenho o coração, neste momento, no ataúde de César; é preciso calar até que ao peito ele me volte."

 

 

Eu não tenho nenhuma edição de Shakespeare em Português  e a preguiça impediu-me de dar aqui uma feita por mim. Servi-me da internet e entendo que esta que usei é razoavelmente  fiel. Entretanto cortei alguma parte mesmo se reconheço que isso só diminui a enorme qualidade do trecho.