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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

estes dias que passam 695

d'oliveira, 24.05.22

Original? Nem tanto!

mcr, 24-5-22

 

Era um alegre trio aquele que se reunia, em “A brasileira” naqueles finais de 60. O mais nov0 e o mais entusiástico era o “Médico”, estudante de Medicina, de su vero nome Américo Caseiro. que faria depois uma sólida carreira como psiquiatra. Que desde caloiro assumira uma postura muito “profissional”, ligeiramente pomposa mas atenuada por uma autocrítica constante e bem humorada. 

O segundo elemento era o Cunha Pinto, um estudante  não sei bem de quê que se mandara para Bruxelas onde ia tirando cursos que nunca completava para desespero de um pai rico e dono de cafés e hotéis na baixa. Não queria entrar na vida adulta e graças à generosa mesada paternal só vinha à pátria madrasta quando a paternidade enfurecida o cominava a regressar sob pena de lhe cortar os meios de subsistência. Era um leitor infatigável, sempre ao corrente das últimas modas culturais, sem presunção alguma . Viria a ter uma curiosa carreira de escritor de culto (três livros notáveis mas só apreciados por uma forte minoria e que lhe deram um lugar de destaque em “trabalhos e paixões de Benito Prada” (Fernando Assis Pacheco) onde a sua personagem enfeitada com um capachinho se cruza com outra com o meu nome, produtor de vinho do Porto e de uma aguardente, especial, especialíssima, de que um inspector da pide era grande apreciador. O Assis tinha essa amável mania de imortalizar os amigos dando-lhes pequenas aparições nesse divertidíssimo romance. E eu, claro estudante veterano de Direito, já sem especiais ilusões.  A nossa mesa, situava-se, obviamente na zona esquerda pois na Brasileira imperava uma divisão tácita de território entre democratas e situacionistas que se agrupavam do lado direito. Com uma excepção: a mesa, dita do aquário por ficar junto da janela direita que era propriedade privada e indiscutível de Joaquim Namorado, Paulo Quintela, Luís de Albuquerque , irmãos Vilaça e outros pesos pesados da oposicrática coimbrã.

Graças ao europeu Cunha Pinto, ao cepticismo do “Médico” e à minha francofilia nascida no turismo de Buarcos, olhávamos de alto a malta de outras mesas e éramos agraciados pelo livreiro Joaquim Machado, o fundador da “almedina” com volumosas pilhas de livros que ele nos destinava. E quando reclamávamos “O sr Machado não temos dinheiro para pagar a livralhada! Ele respondia, hão de ter, hão de ter e na verdade até tivemos.

O Joaquim Machado sabia vender livros mas raro foi o livreiro que permitiu a três rapazolas ter contas assim tão enormes. Lembro-me que consegui inclusive comprar os caríssimos volumes do “Traité des manieres de table” do Levi-Strauus e paga-los a conta gotas. Volta e meia, em cima do balcão da pastelaria, lá estava mais um embrulho da “Almedina” e nós, num alvoroço a tentar adivinhas a quem se destinava.

Esta pequena tertúlia era alimentada em novidades pelo Cunha Pinto que, de quando em quando caía por Coimbra, esporeado por mais um corte de verbas, e mais outro curso a meias. Estavamos na primeira fila das novidades culturais e não nos privávamos. Como nenhum grupo de amigos vive só de cultura pura e dura, também íamos observando o mundo que passava pelo “canal” as dias concorridíssimas ruas da Baixa coimbrã que ligam a Portagem a Santa Cruz  e para além do eterno e masculino passatempo de admirarmos “as virgens que passavam ao sol poente” tínhamos os nossos pequenos ódios de estimaçãoo. Dentre eles, um, um palerma encartado, muito senhor de si a quem alguém, num dia de nevoeiro chamara original. O rapazola acreditou e daí para a frente passeava-se majestoso entre o Arcádia e a Central mais inchado que a nau almirante da armada das Índias e a dar-lhe forte e feio na originalidade.

Nós embirrávamos com aquele garnisé que provavelmente desconhecia esta antipatia. Já não sei qual de nós, numa tarde cavaqueira que entendeu chamar-lhe original. ”Original, nem tanto que diabo!. Shega ori para nomear o fedúncio. 

De Ori a Origenes, sei lá porque razão foi um passo. Passo imprudente porque, por mero acaso, descobri que Origens era um teólogo cristão do seculo II ou III que se castrara a si mesmo e escrevera um texto contra Celso, o autor de “contra os Cristãos. E foi também um dos primeiros impulsionadores do culto mariânico  e da crescente importância da virgem Maria. 

Sai de cena Origenes e volta Ori. E desaparece do nosso universo porque eu formei-me, o Cunha Pinto voltou às andanças europeias e o Médico acaba o curso. Coimbra é, todos os sabem, um efémero ponto de passagem, abençoado pela “juventud divino tesoro” tão cara a Ruben Dario.

Mas a que vem estas emaranhadas memórias de já sessenta anos? Pois porque, já sem poder comunicar com os meus dois desaparecidos amigos, cheguei à conclusão que o dr. Miguel Sousa Tavares é ou pensa ser um original. Semanalmente, no Expresso, numa inteira página que ganharia em ser piedosamente  podada pela metade, o articulista esforça-se por mostrar à cidade e ao mundo que é um pensador original. Desta última vez apenas cito a caixa do artigo sobre a adesão da Suécia e da Finlândia à NATO  o que levou os políticos da Finlândia e Suécia a pedirem a adesão à Nato não foi a invasão da Ucrânia pela  Rússia e o medo de verem isso replicado nas suas fronteiras, mas sim o falhanço da invasão da Ucrânia pela Rússia.   (!!!)

O artigo tem o premonitório título  “tudo isto é triste o que seria uma boa autocrítica mas não é. Eu daria mais corda ao folhetim, mas acho que isso seria gastar demasiada cera com tão ruim defunto.. O homem é assim e já não muda Entrou numa complicada espiral argumentativa,  excitou-se com a polémica, julga-se numa arena a ver o touro espicaçado a ser vítima do diestro, ele, claro. 

Alguma leitora, talvez a Zé C, perguntar-se-á o que me leva a recordar estas tropelias, a lê-lo. Vou, uma vez por todas, responder: Ouço no corredor as botas do moço que vem buscar o folhetim e nada tenho pronto. Vai daí lembro-me do bey de Tunes e aí vai disto. Quando me falta tema, recorro a estes fantasmas que assolam os meus jornais e me tiram do sério e pimba, lá vai zaragatoa. E durmo a noite inteira de um só sono...

Ai como tudo isto é triste, como tudo isto existe, como tudo isto é fado...

 

(sob o nome de Leonel Brim, António Cunha Pinto escreveu três curiosos e excelentes romances:  Talvez Pinóquio” (Hiena ed) ”Os pés do cordeiro” e ”Magistério e desgosto” (ambos na Bizâncio) 

Autor de culto foi alvo de alguns artigos encomiásticos havendo mesmo alguém que no “independente” o considerava o “Joyce português”. Duvido que isso aquecesse ou arrefecesse o autor e, de todo o modo, não é verdade. Mas merece muito uma leitura.