Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

estes dias que passam 727

d'oliveira, 24.08.22

 

 

 

 

 

 

 

shopping.png

Seis meses e trinta e um anos depois

mcr,  24-8-22

 

Celebra-se uma data dupla hoje. Por um lado a Ucrânia é independente há já 31 anos e, por outro,   a invasão russa ocorreu há seis meses.

Estas duas datas, mero acaso do calendário, acabam por tornar o dia importante. É que a denodada resistência à infame invasão veio justificar, reforçar e realçar a independência de três décadas.

Para uma grande maioria de europeus, a Ucrânia era um jovem Estado, desconhecido, cuja história também não despertava curiosidade ou interesse. 

Mesmo o facto de, a partir de 1945, fazer (com a Bielorússia) parte da ONU, não merecia qualquer destaque. Em boa verdade, dada a natureza da URSS, mais parecia que era mais um truque soviético par aumentar o número de votos favoráveis na assembleia geral da referida organização.  E, de certo odo, isso era verdade. Ninguém imagina que algum líder ucraniano pudesse, alguma vez, votar diferentemente. E, que eu saiba, isso nunca aconteceu.

Todavia, a Ucrânia  (a “terra da fronteira”)  tinha uma História mesmo se salpicada de ocupações várias, de revoltas independentistas sangrentas, de uma língua própria, mesmo se semelhante ao russo.

A verdade é que este enorme (para a escala europeia) país viveu quase sempre sob regimes diferentes e controlado por países diversos. Desde a Polónia, a Lituânia e a a federação polaco-lituana até às primeiras tentativas, de resto limitadas, de estabelecimento de populações russas, houve de tudo um pouco . E, paralelamente houve governos “ucranianos” (ou tendencialmente ucranianos autónomos nas regiões centrais do país. A Crimeia, para não ir mais longe, é russa desde a conquista operada pelo valido Potemkin, foi quase sempre território tártaro (é bom lembrar que as últimas dezenas de milhar de tártaros foram deportadas por Stalin que assim acentuou a russificação dessa península. Depois, já em pleno regime soviético, a Crimeia pertenceu à Federação russa de onde saiu por meros motivos de racionalidade económica quando, nos anos sessenta,  Nikita Krutschev a integrou na República Socialista da Ucrânia. E assim se manteve até 2014).

E seria bom lembrar que, durante os temíveis anos de formação da URSS, a Ucrânia foi praticamente independente, derrotou sozinha os exércitos brancos que ocupavam parte do seu território até sofrer uma invasão do Exército Vermelho. E o independentismo ucraniano permaneceu em segundo plano o que originou, entre outras calamidades, uma violentíssima repressão ordenada por Stalin que, como é sabido culminou na grande fome (Holodomor) quando terão morrido entre cinco a sete milhões de ucranianos que foram, de resto, impedidos de sair do seu território para a Rússia e para a Bielorrússia graças a fortes dispositivos armados do Exército e da polícia política.

O sentimento anti soviético foi tão forte que muitos ucranianos receberam os invasores alemães sem hostilidade ou mesmo, em vários casos, colaborando com eles. Paralelamente, a Ucrânia, participou decisivamente na chamada “Grande Guerra Patriótica” e de tal modo se comportou que foi alvo de expressivas homenagens de Moscovo. Como república federada, pagou um altíssimo preço ente mortos e feridos (eventualmente, um terço das baixas totais da URSS) e as tropas ucranianas desempenharam um papel absolutamente vital na vitória final. Tudo isto está mais que retratado na História oficial, reconhecido genericamente. Com o fim da URSS, a Ucrânia, como a Arménia, os países bálticos ou a Geórgia, para só referir alguns, preferiu a independência total  e tal facto foi solenemente reconhecido pela Federação Russa.

Ninguém nega que alguns, pelos vistos mais que minoritários, sectores ucranianos se mantiveram pró russos e que houve forças políticas (também fortemente minoritárias ) que nunca abandonaram a ideia de integrar o país numa união a três (incluindo a Bielorrúsia) . Para  tal  havia dois factores importantes, a religião (e a obediência ao patriarcado de Moscovo) e a língua que era falada por alguns milhões de ucranianos que ou eram bilingues ou apenas russófonos (Zelensky, para não ir mais longe, era russófono...).

 

No entanto, o peso da história pregressa, a atração pelo ocidente, um sentimento global de pertença à Europa, pesaram definitivamente na balança.

Nem muitos ocidentais, nem sobretudo, Putin e os ultra-naciolistas russos  perceberam isso.

Assim, quando a invasão ocorreu (e aqui convem lembrar que apenas os Estados Unidos avisaram com antecipação a iminência de um ataque russo em que nem sequer as autoridades de Kiev acreditavam, mesmo depois da ocupação da Crimeia e da auto-proclamação das “repúblicas populares” do Donetsk e de Lugansk)- de resto absolutamente dependentes do apoio militar russo )

(Vale a pena recordar que num jornal de referencia, um cartoon diário, por varias vezes, retratou um militar americano a desesperar pela tardança de um acto militar russo. A ideia, pelos vistos, era ridicularizar essa opinião mas os factos, sempre eles, provaram que o cartoonista, aliás excelente, também se podia enganar.)

A invasão ocorreu e, mais uma vez, tudo indicava que num par de dias, duas ou três semanas no máximo, a Ucrânia seria vencida, ocupada e o seu Governo substituído por um outro pronto a entrar em funções e estacionado na fronteira.

Para pasmo geral, nada se passou como se previa. Já passaram seis meses. A guerra tirante os mísseis e a aviação russos está para durar. A conquista de Kiev gorou-se em pouco mais de um mês. Nas últimas semanas o frente oriental estabilizou-se e no Sul os ucranianos aumentam a pressão sobre os territórios ocupados e limítrofes da Crimeia.

Dir-se-á que isso é fruto da ajuda europeia e americana. Também é mas tal ajuda que só agora se vai concretizando em força, só ocorreu porque o Exercito e o povo ucranianos (e o Governo) deram provas de uma capacidade de resistência desconhecida, digamos espantosa, formidável e heroica.

Também é verdade que a tropa russa parece mais apta a pilhar e a matar civis do que a combater corpo a corpo. Que o comando militar russo padece de incompetência ao mesmo tempo que a corrupção avassaladora inclusivamente nos domínios da Defesa torna deficiente a logística e mina o moral (baixo, muito baixo) dos soldados russos.

Mas sobre tudo isso, sobre as ajudas militares ou a ineficiência russa, paira o sentimento de pertença a uma nação livre, independente e democrática e a vontade de não se vergar a uma imensa violação do Direito Internacional, a uma   grosseira interpretação da História eslava e a uma mentira orquestrada sobre a essência do poder de um país que está demasiado pero da Rússia e eventualmente muito longe de Deus par usar uma frase conhecida.

Não admira que, hoje, haja motivos, e não são poucos, para saudar um país que, neste momento se defende e, ao fazê-lo defende alguns dos seus vizinhos, desde a Moldávia à  Polónia ou aos Balticos e defende a Europa toda da imprevisibilidade de um poder russo que mantém toda a sua crença numa missão imperial que não só não trouxe prosperidade e bem estar ao seu povo mas foi fautor de profundos desequilíbrios em todo o continente sobretudo ao centro e ao leste europeus.