estes dias que passam 729
Por onde anda o povo?
E o que quer?
mcr, 26-8-22
Começando pelo princípio como dizia um imortal professor da Faculdade de Direito da não menos imortal Universidade de Coimbra , minha alma mater ou madrasta: isto da palavra povo tem muito que se lhe diga e, desde há pelo menos duzentos e cinquenta anos, ninguém se entende.
Entre nós, e apenas a partir de 74, a coisa andou muito difícil. Havia o povo unido nunca mais será vencido (expressão importada do desastre chileno e quase votada a destino semelhante) o “bom povo português” com ressábios ao velho regime, via o almirante cavernícola (não confundir com outro também arcaizante e dado ao consumo de bebidas fortes que também não se notabilizou com feitos guerreiros) e a filme medíocre que presumia de “revolucionário” coisa, aliás, corrente nesse tempo.
Havia quem falasse do povo de Esquerda ou de um povo e dos trabalhadores, como se estes não fossem povo ou o povo não fosse maioritariamente trabalhador.
Regra geral (aceite até por quem não percebia quão exclusiva se tornava a palavra) o povo era toda a gente menos uma pequena elite de capitalistas e latifundiários , veras sanguessugas do restante povo...
Depois, e agora, temos que na Rússio povo é uma coisa e os apoiantes de Putin outra.
Ora ocorre que a criatura que governa no Kremlin tem sido eleita por tremendas maiorias mesmo se talvez valesse a pena verificar como são fabricadas. E se o medo, as prisões, o silenciamento de rádios, televisões e restantes meios de comunicação , não adulteram os resultados eleitorais.
De todo o modo (e com todos os cuidados acima enunciados), assistimos, estupefactos, a uma estridente e violenta maioria de populares pró-guerra, digo pró “intervenção armada especial”. Quem fala em guerra ou duvida cautelosamente dos motivos da intervenção ou do seu resultado, “vai dentro” com uma rapidez que faz, e de que maneira!, recordar os velhos gloriosos tempos soviéticos.
Ainda anteontem um ex presidente de Câmara (de Ekaterinemburgo , cidade enorme , a quarta da Federação russa) foi preso, será julgado e tudo indica que um tribunal “justo” e “imparcial” o condenará a cinco anos pela prática do crime de descrença na Pátria e nos seus amados dirigentes.
Por outro lado, e entramos na polémica actual, temos que da Rússia se escapam umas dezenas de milhares de oposicionistas, de “dissidentes” e, ao mesmo tempo, da mesmíssima gloriosa atacante e ocupante de territórios vizinhos saem, como turistas pacíficos outros muitos milhares de cidadãos animados pela vontade de viajar, de conhecer outras gentes e de se comportarem como se nada de surpreendente ocorresse no seu país.
Alguns países (Finlândia, Letónia, Estónia, Polónia, República Checa, entre outros normalmente vizinhos e ex-vítimas do expansionismo russo-soviético) começaram a tomar algumas precauções na concessão de vistos de curta duração. Não é que se julgue que, nesta enxurrada de cidadãos ávidos de mundo, haja gente que apenas pretende espiar, informar-se da força dos países onde deambulam, mas apenas se afirma que os cidadãos de um país agressor devem perceber que a sua pátria agride, mata, destrói e ocupa outo país. Que, por isso se estabeleceram sanções que pretendem atingir e penalizar o agressor, os seus dirigentes, os seus oligarcas, a sua militaragem e todos quantos comungam da fúria invasora.
Ou, por outras palavras, é preciso que alguém que, com o seu silencioso apoio à ditadura putinesca, acaba por se tornar cúmplice da invasão, sinta na pele e no desejo veemente de se passear pela Europa que “no está el hornos para bollos”.
Dir-se-á que estes turistas não trazem armas nem matam civis na Ucrânia. É verdade mas também não se comovem especialmente com o que passa por lá, não exigem dos políticos uma outra atitude que não seja a de lamber a mão e o cu de Putin, que não seja uma resposta mesmo tímida ao novo sonho de uma Rússia Imperial e colonizadora de países limítrofes.
É preciso que o “povo” russo saiba que há uma guerra e que, queira ou não queira (e o seu exaltado nacionalismo ou o que passa por tal, demonstra) há uma generalizada condenação de uma agressão que vai no sétimo mês mas que vem, de facto desde 2014)
Aqui não se advoga, longe disso, a teoria que o russo bom é o russo morto, perseguido, insultado e humilhado, mas apenas que é preciso que os russos percebam que algo está podre no reino do Kremlin e zonas anexas. É preciso percebam, como por exemplo, nós portugueses percebíamos, quando nos defrontávamos por essa europa fora com manifestações anti Portugal que aguentava três guerras em África. Três!
E que tirante um punhado de resistentes, de combatentes anti-colonialistas, de perseguidos, de encarcerados, de exilados parecia haver no país que viu partir durante treze vergonhosos anos, dezenas de milhar de jovens, carne para canhangulo, rumo às matas africanas.
É verdade que muitos partiram porque não podiam, não sabiam, não conseguiam enfrentar a ideia da recusa e da deserção. O analfabetismo era galopante, aquilo eram pretos ignorantes, Portugal ia do Minho a Timor, enfim tudo o resto.
Mas mais verdade era que esta desesperada, estúpida, tentativa de fugir aos ventos da história e à vontade dos povos dominados, não tinha futuro (nem presente) e concitava contra nós toda a gente desde Washington até Moscovo, Pequem, Nova-Deli ou Paris. Nem sequer a Espanha franquista prestava qualquer apoio: os fugitivos atravessavam o país vizinho sem que a polícia os incomodasse.
(sei disto porque durante alguns anos guiei, ajudei, fugitivos e desertores pela fronteira minhota. E ia com ele até bem dentro de Espanha – uma vez até S Sebastian- para os depositar num comboio rumo à liberdade. Tive uma sorte danada mas também fiz por isso pois agia sempre com extremo cuidado, pelo fugitivo e sobretudo por mim que, como “passador” arriscava ainda mais). Nunca aceitei a ideia (mesmo se a compreendia e não a condenava sem mais) de que se podia ir para o “ultramar” guerrear semeando a boa palavra entre os soldados. ´À uma isso era impossível e depois nem sequer havia grande hipótese de êxito naqueles quartéis no meio do mato que o “inimigo” atacava e que obrigava, quanto mais não fosse, a disparar para salvar o próprio coiro e dos camaradas ao lado. Só a ingenuidade mais profunda é que acreditava nesta actuação dita política.
Portanto, e voltando à vaca fria: falar do povo russo como algo diferente da multidão que, pelos vistos, apoia Putin, a guerra e pede mesmo ainda mais, é mera desculpa de mau pagador e, fundamentalmente, uma disfarçada aceitação do status quo de agressão. Ninguém pede, sequer Zelensky, quese persigam os cidadãos russos que batem às nossas fronteiras fugindo daquela situação. Ninguém quer proibir, sem mais, os que vem fazer turismo. Todavia, também não parece ser coerente com uma política de sanções fingir que nada acontece , receber de braços abertos todos quantos por convicção profunda, por oportunismo ou por medo dão a Putin o seu aval a uma infâmia cometida contra um povo que não atacou mas apenas se vai defendendo.
Há nestes habituais “russistas” a ideia de que estamos perante dois contendores com iguais razões e pior: que ao ajudarmos um a defender-se, o estamos a usar como “carne para canhão” ao serviço de obscuros interesses imperialistas dos EUA, da NATO, da Europa..
E fingir que agressor e agredido são uma e a mesma coisa.
É cobardia moral ou pior: um escondido apoio ao criminoso gesto invasor por obscuras e antigas razões de cumplicidade e amizade com a central dita socialista implodida nos finais do século passado.
É mais uma vez usar a palavra povo como antídoto à justiça, ao respeito pelos direitos humanos e pelo outro povo que corre todos os riscos e é alvo de todas as agressões.