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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

estes dias que passam 787

d'oliveira, 27.03.23

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Apropriação, apropriações...

Mcr, 273-23

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Estou na esplanada e à minha frente numa outra mesa, uma mulher exibe uns jeans esburacados a preceito na zona dos joelhos e um pouco na coxa mais visível.

Numa mesa ao meu lado duas outras segredam em voz baixa que aqueles “jeans” esburacados são de uma marca caríssima (e serão ainda mais caros se os rasgões forem de origem!!!). 

Estou demasiado velho (não idoso mas velho, repare-se) para me surpreender sequer moderadamente. 

Recordo-me, porém, dos meus tempos de escola primária, na risonha Buarcos da minha infância em que com mais outro menino, também filho de médico, éramos os únicos a usar sapatos. Em boa verdade eram botas de carneira, feitas no senhor Baltazar que garantia calçado ra miúdos irrequietos que duraria pelo menos um inteiro ano.

Os meus colegas e amigos  eram todos filhos de pescadores e nessa época isso significava pobreza, pobreza mais que visível, roupinha remendada, varias vezes remendada, tamancos grosseiros e, por vezes, muitas vezes, pé rapado. 

Eu, o meu irmão no ano seguinte, o Jorge R o Mário Zé G.e o filho do sr Carlos, enfermeiro, éramos os “ricos”. 

Com o Jorge R eu distribuía mata-borrões  que os propagandistas médicos forneciam em quantidade aos respectivos pais. Mata-borrões com publicidade a medicamentos, coloridos, às vezes com o desenho de um frasco de xarope ou de umas ampolas milagreiras. E comíamos pão com manteiga (na altura vendida a granel) ou marmelada (mas só ao lanche!...)

A pobreza desta pequena vila piscatória está de acordo com a pobreza geral do país que ainda não era turístico mesmo se “very tipical” e cinzento 

Todavia, uma coisa não se via: roupa esburacada, rasgada. As mães diligentes dos meus amigos de berlinde e pião, remendavam e remendavam a pobre roupa dos filhos, punham fundilhos nas calças usadas e tentavam trazê-los esmerados, limpos. 

O único luxo dessas mulheres quase todas peixeiras, era o avental, melhor dizendo um avental bordado á mão com inteligência, imaginação e bom gosto. E que só se usava em dias especiais, claro. Os maridos, homens do mar tinham como luxo os adornos do respectivo foquim (recipiente redondo com tampa onde se levava a comida quando se ia para o mar).

Mais tarde, em Moçambique, vi gente (negra, claro) também vestida andrajosamente mas sem os cuidadosos remendos de Buarcos. Dispenso-me de comentar algo que por aqui já foi abundantemente falado. Esta era uma das muitas, e não a pior, marcas do regime colonial. 

Por isso, hoje, tantos anos depois, mortos, desaparecidos quase todos os meu companheiros de infância, num país com que nem sonhávamos naquele tempo, por demasiado utópico, rico e diferente, olho para senhora dos rasgões de alto preço e, na generalidade para as raparigas que se mostram de calças deslavadas e artificialmente rotas com algum pasmo indignado. 

Não vou ao ponto de, para justificar o título do folhetim, falar em “apropriação cultural” pu seja de apropriação de algo típico de um antigo e quase desaparecido (entre nós) “lumpen-proletariado”.

Como o nome indica o lumpen não tem consciência de classe, menos ainda de pertença e apenas sonha, quer, deseja, deixar a miserável condição em que (mal)vive.   

No entanto, importado como de costume, dos EUA, eis que o conceito alastra por aí, sem rei nem roque, impenitentemente confuso e batoteiro. 

Agora, qualquer criatura, de preferência branca e ocidental, que se adorne com abeleira demasiada (e artificialmente) encarolada está a “apropriar-se do penteado africano, signifique isto o que significar (mesmo se a expressão não contenham qualquer grau de certeza pois em África os penteados femininos sejam mais que múltiplos e diferenciados).

Por cá, em reduzidos círculos pernósticos e ignorantes mas com cobertura mediática, abundam as denúncias da “apropriação cultural” levada a cabo por opressores sempre ocidentais (e brncos, claro) colonialistas, capitalistas, neo-colonialistas e racistas, por junto ou por separado.

Notem ue isto é de sentido único, ou seja nunca um africano se apropria de uma qualquer característica ocidental mas apenas os ex-malvados patrões é que são capazes de roubarem a quem de direito a “marrebenta”, os penteados, a restante música, as expressões populares, a dança ou um que outro código de roupa.

Isto é dito e repetido por criaturas que ou já cá nasceram ou para cá emigraram que usam roupas ocidentais, a língua do país que os oprimiu, e recorrem a conceitos filosóficos, civilizacionais de origem europeia.

Há algum tempo, um comentador dizia que as elites africanas dos palop eram profundamente “euopeizadas” e assustadoramente desconhecedoras dos costumes, cultura, história e modos de vida dos seus países de origem. 

Esta é uma daquelas temíveis verdades que se varrem histericamente para debaixo do tapete. A Europa (e Portugal incluído,) continua a ser o alvo da diáspora africana. Dos pobres por falta de emprego, fugidos das guerras civis, dos pequenos e grandes conflitos políticos, da ineficácia e da corrupção dos Estado. Ou simplesmente da cleptocracia das elites das capitais. 

Ora, e aqui rside um dos grandes problemas, quado é a população rural , a mais indefesa a sair e a procurar terras mais acolhedoras, é também uma das bases da cultura africana tradicional que desaparece. Desaparecem as línguas vernáculas, a mitologia, o artesanato, os ritos religiosos, as cerimónias, tudo.

Também não é menos importante para este panorama de desertificação cultural (e social) o facto de em todos os novos países africanos, nascidos dentro das fronteiras coloniais (que se mantêm e provavelmente nunca serão motivo de recomposição ou negociação,  se assistir a uma gigantesca concentração de populações diversas nas grandes cidades.  Aqui são as etnias que desaparecem num dramático melting pot que faz perderem-se na voragem as línguas próprias em prol da “língua oficial” herdada do colonizador.

Descobri, para meu profundo espanto que a percentagem de intelectuais, mormente escritores,  que não sabe uma palavra de qualquer vernáculo que já só sobrevive no “mato”, é cada vez maior. Procure-se em Maputo ou Luanda um dicionário de ronga (xironga) ou de umbundo. Não há, ou eventualmente em 2ª, 3ª ou 100ª mão um exemplar coligido, editado e vendido durante o período colonial  e fundamentalmente obra de missionários.

Procurem-se, nas livrarias, escassas e de pequena dimensão, obras de etnografia, antropologia ou mesmo história. O resultado é desolador. Há alfarrabistas portugueses mais bem fornecidos do que instituições científicas e culturais fora das capitais.

Sirva de exemplo o caso da centena de publicações do Museu do Dundo criação da extinta Diamang. São obras centradas nas populações da Lunda (Ts

chokwé, Quioco, Cókué). A única reedição que conheço foi feita pela Universidade de Coimbra, pelo Museu de Antropologia e é a obra extraordinária de Marie Louise Bastin (A arte decorativa cókué). É verdade que se menciona a colaboração do citado museu africano mas é duvidoso que tal menção signifique mais do que uma pequena cortesia.  

Uma senhora ex-deputada e actual vereadora da CM de Lisboa indignou-se pelo facto de a Praça do Império se chamar assim e aponta o odioso do nome a lembrar um passado que, queira-se ou não, existiu. Que eu saiba a dita praça sempre se chamou assim tanto mais que remonta à Exposição do Mundo Português. É por ter existido o dito “império” que esta senhora vive em Portugal. Que o “império” foi mais uma piedosa ficção (e uma dolorosa experiência para uma enorme multidão africana) não há grandes dúvidas- Porém varrer a História boa ou má para baixo do tapete da amnésia colectiva não resolve nenhum problema antes dria mais mistérios insondáveis sobre um passado que se pretende fazer desaparecer. Esta praça, de resto é um dos acesso ao jardim tropical um jardim botânico que  na parte de cima tinha um dos principais institutos de estudos coloniais. E aí vndiam-se documentos únicos para quem quisesse honestamente estudar a história das colónias. Actualmente o dito instituto perdeu a autonomia e está na dependência de uma universidade que, provavelmente, e por falta de meios, o manterá inactivo semi aberto ou semi fechado. É mais do que provável que tal senhora nunca tenha lá posto o meigo pé nem que fosse só para ver o riquíssimo espolio botânico do jardim. Os milhares de afro-descendentes residentes em Lisboa também não conhecerão este instituto nem os restantes que, de todo o modo, lhes poderiam restituir um pouco da História a que tem absoluto direito. 

É também provável que a referida senhora nunca tenha entrado na “veneranda” Sociedade de Geografia de Lisboa cuja biblioteca em muito a ilustraria mesmo sendo, como não podia deixar de ser numa instituição que remonta às grandes horas do “império”, um  enorme acervo de escritos coloniais (era aliás assim que se auto-qualficavam os defensores do “império”  conjunto recheado de militares ditos africanistas).

Pelos vistos o sentimento e o ressentimentoo quanto às injustiças de todo um século, fica-se pela tola acusação de “apropriação cultural”  desta feita baseado em três penteados ou no uso de camisas e vestidos feitos em tecido de capulana! 

E é tão parolo quanto a moda dos jeans rasgados, moda que corresponde à pior herança da sociedade de consumo e de esbanjamento.

 

(pelos vistos anda por aí um grupo de criaturas que acusa estes intelectuais africanos e reivindicadores de apropriação cultural de “valores, hábitos e ideias europeias, ocidentais e... brancas”!  A estupidez não tem fronteiras !)

 

na vinheta: um exemplo nefando de apropriação cultural cá de casa: ao lao de uma estante onde estão fundamentalmente catálogos e ensaios sobre arte, uma litografia de Miró (15 ans poligrafa) e por cima uma marioneta Bozo (Mali). Ao lado e de cima para baixo, máscaras Guru (Costa do Marfim). Bulu (Camarões região sul) e Lega (República Democrática do Congo, centro leste)

A 2º vinheta: um foquim (agora só nos museus de etnografia ...)

 

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