estes dias que passam 893
Nenhum voto é inútil
(desde que metido na urna...)
mcr, 12-3-24
Quem, sem ser compelido mas apenas obedecendo ao que considera ser um dever de cidadania, se dispõe a sair e casa num domingo e ir perder algum tempo numa bicha para votar, demonstra bem que dá importância ao seu gesto.
Vote ele o que votar, mesmo se riscar todo o boletim por raiva, desânimo ou estúpida brincadeira, este cidadão (não há outra nem mais nobre palavra para o definir) el quis significar que leva a sério a res publica, e se sente membro de uma comunidade de homens/mulheres livres .
Todavia, e desde há muito, entendeu-se usar a expressão voto útil para significar que se concentrar os votos (e as vontades) numa solução governativa viável.
Nas últimas eleições AD e PS tentaram (sem qualquer êxito diga-se de passagem) convencer eleitores de outras formações partidárias a votar não com o coração ou com a íntima convicção, nutra fórmula aproximada mas capaz de produzir uma sólida hipótese de governo viável.
Ora, e os resultados estão aí, nem o Livre (que subiu fortemente) o BE ou o PAN foram beliscados e mesmo o PC perdendo votos e mandatos não terá visto todos os seus fieis debandar.
O PC está desde há muitos anos a sofrer de velhice acentuada (e nisto acompanha tardiamente os seus congéneres europeus já quase todos falecidos de morte natural) bem como de inadequação aos tempos que correm, a uma errada estratégia bem visível no seu encapotado apoio à Rússia putinista (onde as ruías do pc local apoiam servilmente o novo autocrata).
O PC sempre viveu de um par de mitos, entre eles o do Alentejo vermelho confundindo aí a fome de terra dos camponeses pores com uma mítica e heróica tradução portuguesa dos kolkhozes soviéticos (que aliás só existiram pela força doa ditadura do proletariado, pseudónimo do poder do partido comunista e do seu aparelho).
Mesmo quando, por pobre habilidade retórica, o "proletariado" passou a ser "os trabalhadores" e/ou "o povo", o partido nunca conseguiu chegar com eficácia à região norte e a boa parte do centro. Claro que conseguiu alguma implantação nas cidades mais importantes, nas zonas mais industrializadas através duma eficaz rede de sindicatos que mais nenhuma formação política foi capaz de criar e manter com a mesma eficácia
Desta feita, no capítulo dos mandatos, o "partido" desapareceu do Alentejo e perdeu a sua posição lisboeta para o Livre!
À direita, a IL manteve-se e cresceu até, enquanto o Chega multiplicou por quatro os seus mandatos e mais que duplicou a sua votação. Mesmo que se atribua este crescimento (ou boa parte dele) à diminuição da abstenção há aqui uma clara negação do voto útil (na AD. claro).
Os eleitores quiseram afirmar o seu desconforto, o seu descontentamento ou a sua raiva, nesta fortíssima manifestação de apoio a um partido que, claramente se declara como de protesto mas de protesto com evidente vontade de entrar na governação.
Isto também provou que a teoria do cordão sanitário não teve eco algum. coo não teve em França ou em Espanha,
as chamadas às armas do Livre ou do BE caíram em saco roto e não terão sido ouvidas pelo PS. Está, para já, afastada a hipótese longínqua de uma nova geringonça que, aliás, poderia ser morta à nascença sem sequer ser necessário qualquer acordo entre AD e Chega,
Até aquela bizarria que dá por ADN e que viu os seus votos multiplicados por dez (uma segura anomalia que nem sequer pode ser explicada pelo voto "evangélico" como foi proposto ) poderá vir a defender-se com um miraculoso entendimento de que apenas foi engordada pelo voto útil. Nada indica que tal tenha ocorrido porquanto a propaganda eleitoral do agrupamento "alternativo e nacional" não poderá ter sido tão forte que tocasse tantos eleitores, Por mim, e na mais generosa hipótese, a ADN poderia duplicar os seus votos. De todo o modo, quem se pode queixar é a AD propriamente dita que vê assim fugir-lhe três ou quatro deputados se os restantes oitenta mil votos lhe fossem dirigidos.
Em conclusão (provisória): o Chega com todo o horrendo e fétido lastro que arrasta e que se deve a um punhado de fundadores, transformou-se, por força das circunstâncias mais do que por inteligência política do seu líder, num verdadeiro partido de protesto e mobilizou mais de um milhão de portugueses.
Por muito que dê jeito a um par de criaturas, é impossível crismar esta turbamulta como partido fascista. Provavelmente nem se conseguirá juntar toda aquela gente, eventualmente pouco politizada, num partido conservador radical.
Este desgraçado país viu (vê) o SNS em pantanas,a educação sem professores numa crise de falta de pessoal docente que inevitavelmente se vai agravar nos próximos anos, o falhanço dramático da construção de habitação a preços moderados, duma inexistente política de defesa nacional (faltam soldados, faltam quadros militares intermédios, faltam navios ou, pelo menos, manutenção adequada dos que ainda navegam, etc.) para, piedosamente, não referir a agricultura, a justiça e as famosas infra-estruturas onde os anúncios se sucedem aos anúncios sem que se consigam perceber os resultados.
Percebe-se, portanto, o voto de raiva de centenas de milhares de cidadãos que, à falta de melhor ou de uma explicação decente, clara e razoável, se viram contra o "sistema" e contra uma AR onde as discussões mais bizarras ocupam o dia a dia dos deputados enquanto se ignoram as preocupações mais correntes dos paisanos.
Não pretendo com isto, ignorar os perigos de uma extrema direita organizada. Já me basta recordar como é que um país civilizado, politizado, com fortíssimos partidos de esquerda e um centro igualmente poderoso se deixou cair no regaço de um cabo austríaco, medíocre pintor (de "brocha gorda"!) se converteu num Führer enlouquecido, incontrolável, adorado por multidões ululantes que numa dúzia de anos levou um Reich que se pretendia milenar à mais pavorosa derrota deixando pelo caminho um rasto ignominioso de sangue e terror.
Porém, sempre é bom lembrar que ainda não chegamos a nada de semelhante e que o mau uso da palavra fascismo se transforma num mantra inerte e sem significado. Que pelos vistos não assustou os votantes do cavalheiro Ventura.
Talvez valha a pena moderar o uso de palavras inúteis e perceber que os votos só são inúteis para quem os pede e não os recebe.