estes dias que passam 900
Onze anos depois
(ou cinquenta e cinco ou mais de setenta)
mcr, 16-4-24
Falta pouco mais de uma semana para os festejos do cinquentenário.
Por razões que não vale a pena esmiuçar caí num texto meu de 13 de Agosto de 2013. Reli-o e achei que republicá-lo sem alterar uma vírgula seria uma boa maneira de começar a referir-me a esse dia antigo e justo.
E, entretanto, pergunto-me se o menino referido que se chamaria Joel realizou ou está a realizar alguns dos seus sonhos.
Sonhos simples, decentes, que num país civilizado, europeu, no sec XXI pareceriam fáceis de se tornarem em realidade.
Tenho porém um mau feitio que a idade só tem agravado e temo bem que aquele grito de alarme televisivo e posteriormente o meu post tenham sido engolidos pelo nevoeiro.
De todo o modo, amanhã, 17 de Abril passa mais um aniversário do início da crise de 69. Recordo, entre tantos papéis publicados um que falava dos "companheiros de bibe e pião" que a nossa geração vira ficar pelo caminho.
No meu caso, dos meus colegas da quarta classe só eu cheguei à universidade. A grande, esmagadora maioria ficou-se pela pesca artesanal ou longínqua e alguns, raros, terão tido pequenos mas meos arriscados trabalhos e empregos. Não é exactamente um remorso o que sinto mas apenas um sentimento absoluto de revolta que o tempo (e neste caso já lá vão mais de setenta anos...) não conseguiu apagar. Eis o texto que reencontrei
estes dias, 297 13-8-2013
Mal, muito mal,
Meu caro Portugal
Ai Portugal se ao menos fosses só três sílabas, sul sol e sal, escrevia alguém, assim ou parecido, já não recordo e daqui deste lugar diante do mar, destino antigo, fado nosso, agora só bom para turistas de pé descalço e esgoto, quero escrever sobre o menino, ontem entrevisto na televisão.
A história é simples:
Um miúdo, que vive em cu de judas mais velho, para lá duma serrania de que esqueci o nome, um miúdo de dez anos brinca com o telemóvel enquanto guarda um cento de ovelhas pertencentes(?) à família.
O garoto é esperto, rápido na resposta e, segundo testemunhos familiares, bom aluno. Vai entrar no 5º ano com uma média de quase 5. Quer ser algo mais e algo melhor do que pastor de cabras numa montanha antiga e íngreme. O pai – e um irmão que também falou – querem para ele as oportunidades que não tiveram. E têm orgulho no pequeno que guarda bem o rebanho enquanto num caderno fatigado vai fazendo contas “para não esquecer o que já aprendeu”.
E sonha em ir à praia que nunca viu mas imagina (ou sabe pela televisão) que tem água, “muita água, gente, areia e sol”. E, sonha, porque não?, em ir ao centro comercial onde há “lojas de roupa e de brinquedos”. Detrás do adulto à força espreitam dez intensos anos e um horizonte de brincadeiras.
Mas, entretanto, enquanto o Verão vai correndo, ele tem cabras todo o dia, o caderninho das contas para ”se não esquecer”, um telemóvel onde joga algum jogo e a montanha desumana, íngreme e quente.
Ao domingo, brinca com os primos... E, como no poema de Prévert, ou quase, não tem tempo para se aborrecer por saber que a seguir vem uma segunda feira de cabras, monte, canseira e o temor de algum lobo à espreita.
Que merda de país é este onde um menino, muitos, demasiados meninos, não têm outras férias que não estas de trabalho adulto e estes desejos tão simples, tão pueris, de ver um centro comercial e uma praia onde há areia, gente e muita água. E ele lá atrás das montanhas que se orgulha de saber nadar...
Oiço, irritado e triste, uns políticos quaisquer (neste momento um rapazola do PPD, outro do PS logo de seguida e finalmente uma rapariguinha do bloco todos a “mandar vir” um par de ninharias, dois narizes de cera, um chorrilho de imbecilidades que, todas espremidas, não dão água que valha para matar a sede a uma cabra no monte para lá do sol posto onde um pequeno cidadão escreve números num caderninho e sonha com o mar, tanto mar e um pobre brinquedo à venda numa loja de um centro comercial.
Desculpem se isto vos parece piegas ou, pior, populista. É que, às vezes, o cronista, para não começar seriamente a bater esta gentalha a tiro de caçadeira, tem de olhar para o lado para um cachopo com um metro e pouco de olho azougado e que se chama, será assim?, Joel, Joel guardador de rebanhos.
E sonha um mundo melhor. Mas, logo de seguida,
“E eu pensando em tudo isto,
fiquei outra vez menos feliz...
fiquei sombrio e adoecido e soturno
como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
e nem sequer de noite chega...”
(Pessoa/Caeiro “o guardador de rebanhos, IV, in fine)