Eu sou vacinado, tu és vacinado e ele não é?
Nos últimos meses todos nos tornamos entendidos em vacinas, à custa de tanto lermos e ouvirmos sobre o extraordinário desenvolvimento de vacinas contra a covid-19. O investimento na ciência e o forte financiamento dirigido às principais farmacêuticas permitiram que, menos de um ano decorrido sobre o surgimento da pandemia, tivéssemos vacinas aprovadas pelas entidades reguladoras a chegarem aos braços dos cidadãos.
A nível europeu, todos aplaudimos a decisão de contratação em bloco das vacinas para os países da União Europeia (UE), constatando-se mais tarde que houve demasiado entusiasmo, mas poucas cautelas e escasso rigor na definição de regras e penalizações perante os incumprimentos das farmacêuticas. Quem investiu o dinheiro necessário para o desenvolvimento das vacinas deveria ter blindado melhor os contratos contra leviandades e chico-espertices.
Entre nós, ter-se-á avançado talvez um pouco tarde demais para a preparação e organização de todo o processo logístico e operacional da vacinação. Mais do que a escolha do perfil de liderança para a task force criada, que tanto se discutiu no momento da substituição de Francisco Ramos por Gouveia e Melo, creio que ficaram evidentes as fragilidades em todo o processo: no critério adoptado no estabelecimento das prioridades, nas cautelas que não houve na administração de eventuais sobras, na demora em planear centros de vacinação em massa, na resposta precisa e clara às reacções contrárias à vacinação.
Se compreendo que seria muito difícil reagir de forma diferente ao alarido criado em torno da vacina da AstraZeneca, com avanços e recuos a nível europeu que poderiam ter contribuído para o descrédito de toda a operação de vacinação, já considero incompreensível a aparente desordem na definição das prioridades na administração das vacinas. Entenda-se que não estou aqui a colocar em causa os grupos de cidadãos prioritários. Refiro-me às pessoas que integram os grupos comuns da primeira fase de vacinação - maiores de 80 anos e cidadãos de idade inferior com doenças sinalizadas para o efeito.
Então, primeiro são vacinados os maiores de 80 anos? Não. Conheço vários casos de pessoas com idade inferior a 80 anos que já foram vacinadas quando muitas com mais de 80 anos ainda não o foram. No escalão abaixo dos 80 anos, a prioridade é atribuída pela idade? Não é, porque conheço casos de pessoas com 60 anos vacinadas antes de outras com 79 anos. O critério terá sido o de valorização da gravidade da doença de cada um? Duvido muito que o SNS consiga fazer essa ordenação ponderada quando se vê agora a Ordem dos Médicos a defender que a vacinação deve respeitar o critério da idade, referindo que outro qualquer princípio vai criar injustiças e deixar pessoas para trás, seja porque não estão referenciadas no SNS ou porque a administração do SNS não consegue garantir a comparabilidade entre os doentes identificados.
Nesta altura do processo, ao fim de vários meses de planificação, exige-se total clareza, transparência e equidade na forma como é gerida a administração das vacinas. Perante a perspectiva de uma vacinação em massa nos próximos meses - assim haja vacinas em número adequado! - menos se compreende que os serviços não tenham já definido um critério para vigorar a nível nacional. Veremos o que nos reserva o futuro.