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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

homem ao mar 69

d'oliveira, 22.06.21

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Liberdade vigiada 49

A erva cresce

mcr, 22 de Junho

 

Aqui havia uma esplanada. Entretanto, os azares do comércio alimentar e outros acabaram com o estabelecimento. Outro surgiu, com longas obras que se foram atrasando ao longo da pandemia. Depois, quando eventualmente planeavam abrir um restaurante de sushi (é a moda...) eis que o vírus regressou em força. A casa, pronta, continua fechada, há papéis colados a desfazerem-se pelas amplas vidraças. A sensação é de abandono, será que a empresa não resistiu a segunda vaga?

Em frente, o chão empedrado deixa aparecer tufo de erva que caminharam entre pedras e cimento, que debaixo há a placa das garagens comuns do prédio, e encontraram refúgio nos grãos de terra que o vento até ali trouxe.

Demorou pouco tempo este regresso da natureza. Ao passar por l´, coisa que faço todos os dias, lembrei-me, vá lá eu saber como e porquê, de dois documentários sobre Tchernobil. As plantas invadiram as ruas da cidade, o interior dos prédios subitamente abandonados. Há cães e gatos que também eles abandonados, esquecidos, se recusaram a morrer com a radiação e parecem sentir-se bem num território que também já foi invadido por raposas, lobos sem falar na passarada.

Só o bicho homem desapareceu. Ou melhor: quase desapareceu. Um punhado de criaturas desafiou as ordens, os regulamentos, a polícia e ficou nas pobres casas que eram suas. Não eram citadinos mas camponeses dos arredores, bem dentro da zona proibida. E lá estão eles com as galinhas, os coelhos, alguma vaca ou cabra provando que a teimosia é mais forte que o medo. Estarão infectados? É provável mas nada o demonstra.

E ao longe, a carapaça de cimento que fecha os tanques de combustível atómico que estrão li para séculos e séculos.

Longe de mim descrer da ciência, dos pareceres dos especialista. A Ucrânia não está, nunca esteve nos meus projectos de viagem, muito menos a zona do desastre. Mais depressa partiria para os mares do sul, e tentaria ver a famosa ilha de Bikini, a dos ensaios  da explosão   de dezenas de bombas atómicas e de hidrogénio.

Desconheço a razão porque os fatos de banho de mulher em duas peças receberam o nome da ilha, aliás um atol. De todo o modo, o bikini impôs-se ampla e rapidamente salvo em Portugal (e Espanha?...) onde só arribou com a primeira grande vaga de turistas em princípios de sessenta.

O pudor campónio do dr. Salazar não resistiu ao brilho das notas estrangeiras, sobretudo francos e libras. As portuguesas aproveitaram com alguma lentidão a boleia das turistas e os homens, mais expeditos e livraram-se para sempre duma peça inacreditável que lhes cobria parcialmente o peito (mas fundamentalmente os mamilos!!!). Nem os meninos e rapazinhos escapavam. O cabo de mar zelava pela moral estival e multava os atrevidos.

Notem os leitores que isto ocorria ainda em plenos anos cinquenta e muitos. Se nos lembrarmos das fotografias de praias francesas ou inglesas dos anos 30 logo podemos fazer contas ao atraso nacional.

Curiosamente, durante a guerra, e com o afluxo de milhares de refugiados muitos deles acolhidos nas praias mais em voga desde o Estoril à Figueira da Foz, conseguem ver-se fotografias desses estrangeiros com fatos de banho no mínimo “indecentes” para a moralidade beata local. De todo o modo esses estrangeiros mesmo refugiados tinham algum dinheiro e isso era o passaporte seguro para exibirem o corpo e escaparem às multas.

   Anda por aí uma discussão envenenada, como é já   costume, sobre o Portugal do Estado Novo. Há uma série de comentadores com tabuleta para a rua  que se fingem escandalizados com um par de números que, não beatificando o regime, registam um que outro tímido e insuficiente progresso  mormente económico. As criaturinhas novas guardiãs da horrenda grande noite fascista (mesmo se não a viveram ou se, e há casos, tendo-a vivido não abriam a mimosa boquinha contra a “situação”, antes se acomodaram num confortável  silêncio de que só saíram quando o regime caiu) destemperaram-se na crítica, na acusação e até, é bom recordá-lo, na denúncia dos sacrílegos “proto-fascistas” às autoridades académicas das instituições onde estes trabalham! Um carnaval grotesco que só dá força a quem não esqueceu o piedoso Salazar e abomina  a democracia.

E, entretanto, a salazarice triste beata é tão fácil de descrever. Com os peitilhos, o saiote dos fatos de bnho femininos, a licença de isqueiro e quatro tretas do mesmo teor tira-se um retrato à la minuta cruel e verdadeiro do Portugal post Maio e pré Abril.

Mas isso necessita de esforço, estudo, liberdade na cabecinha sonhadora e horror às verdades oficiais ou oficiosas pret a porter, produto da ideologia dominante a cada momento.

Ora, se há um Portugal velho e relho que se recusa a morrer é justamente o desta vaga casta de cavalheiros devotos de todos os antigos fanatismos, das verdades reveladas e do mundo a preto e branco.

Como as ervas a romper a calçada e a reocupar um espaço que porventura nem seu era, são estes novos velhos cruzados que em nome de uma liberdade que desconhecem aniquilam a liberdade a que também eles poderia ajudar a vencer preconceitos e rancores mal cicatrizados.

Como as ervas que rompem o passeio, como as árvores que florescem em Tchernobil, como os coqueiros que teimam em nascer em Bikini...