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Incursões

Instância de Retemperação.

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liberdade vigiada 119

d'oliveira, 28.08.21

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Liberdade vigiada 119

“este parte, aquele parte...”

mcr, 28 de Agosto

 

 

Sirvo-me do poema de Rosalia, musicado pelo Zé Niza, e cantado pela primeira vez por Maria João Delgado, na altura minha mulher, excelente actriz, boa voz, animosa, corajosa, lindíssima e inteligente. Estávamos a tentar montar um espectáculo teatral sobre “Castelao e a sua época” com encenação de Ricardo Salvat em 1969.

Claro que a Censura, a polícia, a crise de 69 e a fama cada vez mais “sinistra” do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), tudo se conjugou para que a peça nunca chegasse ao palco, mesmo se partes dela tivessem sido mostradas durante as noites de brasa das guerras estudantis.

Depois, o Adriano (também do CITAC) pegou na cantiga e tornou-a conhecida por toda a parte.  A dupla Adriano/Niza (também do CITAC, claro) deixou um rasto luminoso na música portuguesa. Um rasto de heroísmo, dedicação, qualidade que ainda se mantém.

 

Se eu peguei neste primeiro verso é, infelizmente, po outra causa. Morreu o Rui Oliveira, um amigo mais velho, desde meados de 64 mesmo se nós só nos tivéssemos dado com mais intimidade, depois do 25 A.

O Rui Oliveira era engenheiro civil e arribou ao Porto, depois de algumas desventuras políticas no tempo de estudante. Como era de Esquerda e, também ou sobretudo, um excelente profissional entrou na empresa “soares, Magalhçaes e Delgado” onde pelo menos o primeiro e o terceiro sócio tinham já um percurso de resistência conhecido e reconhecido. Jorge Delgado passara mesmo pelo Tribunal plenário, apanhara os costumeiros dois anos de prisão mais medidas de segurança. Como já era conhecido como engenheiro cumpriu a pena numa espécie de campo prisional em Trás os Montes onde estava a ser construída uma cadeia civil. Delgado penou portanto a sua condenação em Izeda, uma aldeia de Mogadouro. Tinha a seu cargo, pelos vistos, a tarefa de garantir tecnicamente a obra. A mulher aa filha passaram ali, também, o tempo de prisão do Jorge que mais tarde, como calcularão pelo nome se tornaria meu sogro.

O Rui Oliveira terá entrada na empresa mais tarde mas rapidamente conquistou um nome como engenheiro e outro, mais perigoso, como militante oposiocionista.

Todavia, e curiosamente, não o conheci nessas vestes mas apenas como amador de Jazz.

De facto, na Associação Académica criou-se nos anos 60 uma secção de jazz e nela um quinteto  onde pontificavam o Niza, sempre ele!, Daniel Proença de Carvalho, José Cid, Rui Ressurreição e Joaquim Caixeiro.

Este grupo, a quem devo os meus primeiros momentos de jazz ao vivo, realizava umas Jam-sessions ma AAC e a elas comparecia um jovem casal (de todo o modo bem mais velho do que nós) que descobrimos vir do Porto.

Era o Rui Oliveira e a primeira mulher, uma artista plástica talentosa e de que perdi o nome.

Já advogado no Porto, voltei a encontrar o Rui desta vez animador de uma cooperativa cultural da oposicrática e aí reatei relações, desta feita, mais fortes sobretudo porque ele sabia de um par de prisões minhas ,a última das quais recentíssima.

Com o 25 A, acabámos por nos juntar no MES, uma aventura esotérica, absolutamente condenada ao fracasso, dada não só a concorrência desenfreada na margem esquerda da política do momento mas também , e muito, pela confusão programática e estratégica em que, cedo o2movimento” caiu. Ao fim de cerca de uma no lá saímos, mais velhos, mais desiludidos, mais cansados e talvez mais experientes.

Depois, lá fomos intervindo, individualmente em diversas iniciativas, seguindo de perto a tentativa de Jorge Sampaio e amigos mas, no caso do Rui, pelo menos, sem cair no PS.

E ao longo de todos estes anos lá nos encontrávamos , algumas vezes profissionalmente. De facto a “soares Magalhães e Delgado” foi a empresa que a Delegação Regional de Cultura do Porto  encontrou para uma série de obras  na sede e sobretudo no restauro da “casa Queimada” dos Távoras onde se instalou primeiramente o efémero Museu Nacional de Literatura e depois a delegação do IPPAR. E era o Rui o nosso interlocutor, ou melhor o meu interlocutor a partir do momento em que integrei a pequena equipa da DRN.

Ainda trocámos um par de discos de jazz e obviamente nos encontramos sempre que ao ANCA (Auditório Nacional Carlos Alberto) vinha uma formação de jazz. E vieram algumas  graças a uma colaboraçãoo excelente com o consulado americano enquanto este durou no Porto.

Agora, pensando bem, já não nos víamos há quatro ou cinco anos.

Ontem, o Zé Dias, uma espécie de notário implacável do antigo MES (e meu colega e companheiro de aventuras em Coimbra (chegámos mesmo -em 1970-) a pertencer aos mesmos corpos directivos da AAC) mandou-me a notícia da morte do Rui. Não o poderei acompanhar à sepultura pois estou longe mas nem por isso quero deixar aqui esta nota.

Esta geração, ou estas, a dele e a minha, estão a desaparecer com naturalidade e rapidez. É a lei da vida. Ou da morte, tanto faz.

Dele, com toda a justiça, pode dizer-se que foi um resistente e um cidadão exemplar. É mais do que muitos, a maioria, a imensa maioria que ainda permanece. Didn't he ramble?
Didn't he roam?
Didn't he wander
So far from home?
Didn't he teach us?
Didn't we learn?
Didn't he reach out
Beyond all return?
Didn't he ramble?
And didn't he stray?
Didn't he wander
So far away
?

Até sempre, Rui, caro amigo e camarada. 

*na vinheta: um funeral em New Orleans

o excerto em inglês é de uma tradicional canção também usada em enterros na mesma cidade.