liberdade vigiada 138
Liberdade vigiada 138
Mas sempre trapalhão...
mcr, 16 de Setembro
Ontem estive à conversa telefónica com a minha velha, velhíssima amiga Jujú “Cachimbinha”. Eu odeio telefones mas a Jujú não me dá alternativa. À Uma gosto muito dela. Depois, ela que conhece a minha ojeriza ao telefone, avisa-me ameaçadora: se tentas baldar-te, telefone à uma, às duas, às três e às quatro da manhã...
Às tantas veio o blog à baila. A Jujú vive numa quinta soberba, na zona de Sintra, compra tudo pelo telefone ou pela internet, tem um motorista (ela nunca guiou) que vi às compras com uma empregada que sabe exactamente o que a patroa quer, vê televisões de todo o mundo, lê, faz lavoura (!!!, mais diria que jardina mas enfim. Além do jardim ela tem um pequeno campo só com ervas silvestres onde também mandou pôr rosmaninho, lavanda e outros cheiros desses, que fazem a felicidade de um apicultor vizinho que todos os anos oferece boiões de mel. A Jujú entrega-lhe os boiões vazios e brinquedos para os filhos.
Chamamps-lhe “Cachimbinha” porquanto aprendeu a encher o cachimbo de um irmão mais velho, filho de um primeiro casamento da mãe que enviuvou muito nova. O irmão, Alexandre Manuel ou “Xaninho” (Xanel para uma noiva enternecida, que com isso e umas formas redondas a preceito, o levou ao altar) fumava cachimbo. E fumava-o a sério. Tinha uns cinquenta cachimbos, usava cada um só uma vez, até dar a volta completa e voltar ao primeiro) e apreciava tabacos holandeses de alta qualidade. Nos aniversários, nós todos, os amigos do costume, só tínhamos o trabalho de um ou dos meses antes encomendar na Havaneza de Lisboa embalagens diversas para a festa. Xaninho ficava de olho pingão com esta prova de carinho da frátria e fazia a primeira cachimbada sempre acolitado pela irmã dez anos mais nova e preparadora inigualável de cachimbos. Também os limpava com extraordinária eficiência e como ainda era menor entre os menores, tinha a obrigação de prendar o mais velho com caixas de fósforos. Para isso recorria a um tio embarcadiço (era médico de um navio) que lhe trazia fósforos de todo o mumdo!
Claro que se casou com um inveterado do cachimbo que, porém, a deixou viúva com três filhos. A história desta morte é sinistra: o cachimbante tinha negócios em Inglaterra mas adorava Paris. Portanto logo que terminava os contactos em Londres, embarcava no ferry para França. Dava um salto a Paris, enchia-se de choucroute à alsaciana e regressava para os braços da bem amada com mais dois quilos bem pesados. A Ju punha-o a dieta de vegetais, mas a havia sempre uma empregada piedosa que lhe levava um bife com ovo a cavalo ao escritório onde a Jujú não punha o pé.
O marido, numa dessas surtidas de ferry para França entendeu, num dia de temporal tremendo ir para o deck aviar uma cachimbada. O mar encapelado fez com que o ferry batesse noutro barco. Houve um pancadão de feridos e um desaparecido provavelmente caído ao mar durante a colisão. Era o marido da Jujú. Todos lhe dizíamos que morreria de cancro por via do tabaco e ele propunha apostas sobre a sua morte. Eu, do cachimbo, não morro, garanto-vos. E de facto morreu num abalroamento de navios em dia de tempestade na Mancha. Todavia, W afirma, não sem lógica, que se ele não fosse cachimbar para a amurada, não teria morrido! Alguma razão em. Até Jujú concorda.
Ela dava explicações de inglês e alemão e com isso governava-se lindamente. Aluno imprestável nessas cadeiras, só tinha essa salvação. A Jujú metia-o na ordem e enfiava-lhe a língua em falta à martelada se tal fosse preciso. A fama dela era absoluta e os preços que praticava escandalosos. “Meter uma língua naqueles cérebros embrutecidos e preguiçosos é um trabalho de Hércules. Quem achar que sou cara que vá procurar outra!”.
Os resultados dos explicandos dissuadiam qualquer pai aflito com a ignorância filial. Até havia quem metesse cunhas. Fora a jardinagem, as explicações, o cuidar dos filhos, a Jujú era uma temível jogadora de bridge. Jogava bem, desancava o parceiro se este asneava ( já o imortal Reese, grande estre deste jogo abençoada dizia que o melhor do bridge era ir às orelhas do parceiro quando este falhava uma voz ou uma vasa imperdível.)
Ora bem, a Jujú telefonou por via de um texto meu deque gostara mas “tinha imprecisões” –Tu até nem te desenrascas mal. Até podias ser genial mas és quase sempre um trapalhão!”
Aceitei humildemente o epíteto. Até eu, me considero um trapalhão e isso desde os tempo da escola primária.
.
“E agora o que preparas para amanhã?” Expliquei que não preparaa nada mas provavelmente iria escrever sobre um médico negaionista que andara vagamente, e mal, pela política, até desaparecer.
“Ora, deixa-te disso. Esse palerma foi apanhado pelas contas da ong. que fundou. Aquilo era um emprego para toda a família. Devia sobrar pouco para os desgraçados dos pretinhos doentes. O homenzinho delirava e quando foi político, e deputado (ao que isto chegou!) só metia as patas de trás pelas da frente. Até se candidatou a presidente da república, o alucinado. A minha vontade era dar-lhe um par de xulipas. “
Convém dizer que a Jujú foi das primeiras portuguesas a fazer judo e depois karaté e outra lutas esquisitas. Era franzina mas tinha pelo na venta. Foi para o judo mas o professor disse-lhe que ela era rapariga e ali só havia rapazes. “Deixe lá que eu dou conta desses mariconsos todos” E tanto insistiu que entrou. E arreava nos outros forte e feio mesmo se também apanhasse quem lhe chegasse a roupa ao pelo. Os judocas deliravam com a coleguinha e ai de quem se atrevesse a olhá-la de soslaio.
Bom, acabemos com a Juju, porque em boa verdade, hoje mesmo comecei a verificar, mais uma vez, que a Jujú tem sempre razão.
Meteu-se-me na cabecinha pensadora organizar os meus posts, isto é todas as croniquetas que, durante esta dúzia de anos tenho cometido. É que, descobri que por vezes me repito, ou pelo menos toco no mesmo assunto, na mesma historieta, vá lá que a segunda versão não põe em causa a primeira mas, a memória já não é o que era e eu não queria repetir-me, desmentir-me, fazer fraca figura (ou mais fraca do que a que já faço).
Portanto, fazer um ficheiro completo, índices remissivos, se possível com indicação do assunto, coisa séria. Não que me queira publicar mas, que diabo, queria, ao menos, poder chegar a qualquer escrito sem andar perdido por aqui.
Entendi começar pelos escritos deste ano e meio de pandemia. Ai jesus, Maria, José!
Primeiro são muitos, cerca de 500. Depois, estão ordenados por títulos e séries diferentes. Há mesmo numeração repetida, coisa em que sou perito desde quase o primeiro dia em que aqui escrevo. Um desastre!
O mês de Março do ano passado já me mostrou como é que as coisas vão ser. Optei por ir pesquisar cada dia e descobri espantado que só assim é que eventualmente conseguirei – e com dobrados trabalhos – apanhar tudo. A primeira tarefa foi fazer uma pasta secundara onde amontoei os primeiros vinte textos. Depois farei um índice por títulos e, como sub-produto, outro por datas. Como sou um trapalhão info-excluído, entendi imprimir uma meia dúzia. Descobri aterrado que essa meia dúzia dava quarenta e tal páginas. Bem sei que a letra saiu grande mas não conseguirei reduzir a coisa a menos de 35.
Ou seja, cada martelada na paciência dos leitores dá, em média 5/6 páginas, pelo menos. O que quer dizer que em 2/3 anos a coisa irá a ¾ ou 5 mil páginas. Nem o colega Marcel Proust, um chato genial e embirrante, todo devotado âs “madeleines” e às duquesas e outros aristocratas fin de siécle, escrevinhou tanto. Mas ele tem desculpa: escreveu peças imortais. Às vezes chatas mas sempre brilhantes.
Mesmo assim o Gide, pela primeira vez que o leu, recusou o seu aval e o pobre Marcel teve de procurar editor alternativo.
Porém, eu que lavro esta leira de terra maninha apenas para me distrair não tenho essa desculpa. A desculpa do génio, claro.
Proust tinha o hábito de reescrever. Era como o Eça, um maníaco da forma, do estilo, da elegância. Eu, além de trapalhão sou preguiçoso, já me dá uma trabalheira reler o que escrevi, para corrigir algum erro ortográfico mais evidente e semear um punhado de vírgulas.
Usto de uma pessoa e dedicar à crónica tem vantagens. A coisa sai, e não se pensa mais naquilo. Um romance é outra dimensão: há que cerzir, e `mão, duzentas trezentas páginas, criar um enredo, inventar um par de personagens credíveis, enfim contar uma história com cabeça tronco e membros. Ai o que eu admiro Balzac, Eça, Stendhal e mais meio milheiro de cavalheiros (e senhoras, claro está) que suaram as estopinhas, rebentaram os olhos, perderam noites e dias sentados a uma mesa a olhar aterrados para a página miseravelmente branca, à espera de uma ideia, de uma frase, de um milagre. E sem desfalecer, com uma vontade indómita de vencer, de convencer, de ser o que eles queriam ser!
E eu, práqui (assim mesmo, práqui)às voltas com o fantasma da escrita à matroca, da escrita que pratico, disto.
Mas vou à mesma, fazer o fdp do índice. Vou gastar remas e resmas mas sempre quero ver o que fiz. E nõ me fio na internet, mesmo se isto organizado lá tiver também lugar. Estou como o meu querido amigo Zé Quitério que só acredita em papel. O resto não é com ele que, provavelmente, nunca usou computador. E que bem que escrevia o grande sacana. Oh, inveja, mãe de todas as canalhadas, deixa-me em paz que eu sou muitas coisas, todas más, péssimas, assim-assim mas invejoso não. Pelo contrário, fico feliz pelos êxitos dos meus amigos. Até penso que esse êxito espalha sobre a minha velha carcaça um ligeiro aroma antigo e suave, como o da pétala dentro do livro há muito fechado.
*sobre o título: já aqui referi o caso daquele melómano alucinado que de Beethoven dizia: por vezes inspirado mas sempre ordinarote! Entre o velho grupo de amigos que se intitula "o 7º de praia com latim e grego por fora" esta frase foi sempre muito usad. A a Juju, a malvadinha, lá a usou mais uma vez.