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Incursões

Instância de Retemperação.

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liberdade vigiada 139

d'oliveira, 17.09.21

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Liberdade vigiada 139

África, África...

mcr, 17 de Setembro

 

entre os 13 e os 15 anos, ou seja no segundo ciclo do liceu, vivi em Moçambique, primeiro em Lourenço Marques e os últimos oito meses em Nampula.  Nessa última estadia, percorremos boa parte do “mato” dos então distritos de Moçambique e Cabo Delgado. Eu enjoava que nem um pescada mas apesar disso, não nego que essas pequeníssimas terras a que íamos, capitais de circunscrições e algumas vezes simples “postos” tinham um certo encanto. O meu pai tinha amigos (sobretudo parceiros de bridge) em vários sítios e a chegada dele era uma festa para os restantes jogadores que raras vezes conseguiam “fazer uma mesa”.

Claro que eram as praias o que mais nos interessava e, sobretudo , a das Chocas, no Mossuril, frente à lha de Moçambique onde íamos amiúde. Convém explicar que ir à praia significava uns bons cento e cinquenta quilómetros, que em África não passava de um passeio.

A ilha, ainda sem ponte para o continente, era extraordinária. Lado a lado os testemunhos d uma presença portuguesa de séculos (a fortaleza, os fortes, as igrejas, as casas  dos brancos e depois um bairro “indígena” de palhotas com uma enorme densidade populacional. E  os riquechós que para nós miúdos eram uma novidade.  

Era diante da ilha que os paquetes paravam, em águas profundas mas a escassas dezenas de metros de terra.

A chegado de um paquete, (duas, três vezes por mês) era m acontecimento para a população branca. Parava tudo para ir a bordo, fazer compras, encontrar conhecidos que chegavam ou partiam, às vezes de Porto Amélia, beber um copo (igual aos de terra mas com sabor de ode marítima), enfim, uma distração numa terra que pela sua pequenez  (3000 por 350 m) não oferecia aos habitantes grandes oportunidades fora o trabalho e a má língua).

Havia uma praia mas nada que se comparasse às praias da costa, quase todas coralinas, areia branca, coqueiros até à beia-água, algo que se costuma vez nos exóticos mares do sul.

A praia das Chocas tinha uma série de pequenas casas para veraneio, propriedade da administração d circunscrição e que podiam ser alugadas. . à beira mar, havia “parrots” (um a construção de quatro ou cinco pilares com teto de colmo) para proteger os escassos banhistas do sol tropical e violento.

Logo que alguém chegava, aparecia um ou mais pescadores que se ofereciam para ir buscar peixe e, sobretudo lagostas. As lagostas eram vendidas em latas vazias e só havia duas medidas: meia lata ou lata inteira. Tudo pelo preço da uva mijona. (“Ah, quem não viveu na África colonial não sabe quanto a vida para os colonos era boa”. Desculpem a frase roubada a Tocqueville mas ela é de uma justeza dramática).

Ainda voltei a Moçambique para férias da faculdade por três vezes mas na última, já as sombras da guerra pairavam o longe. Nampula estava transformada em quartel general de muita tropa, havia notícias poucas mas graves de incidentes a norte de Mueda e na zona das duas Mocímboas. Já havia uma base aérea militar de onde desertaram dois amigos meus que faziam o serviço militar. Eram brancos moçambicanos e tomaram o partido da FRELIMO. Um deles chegou a ministro depois da independência.

Todavia, na cidade e nas circunscrições do distrito a vida prosseguia, tranquila, plácida, dizia-se que os makuas não alinhavam com os guerrilheiros e talvez fosse verdade. O mesmo se passava, dizia-se, com as etnias Nianja, Ajaua e outras de Cabo Delgado.  Mas presença de vários destacamentos militares era notória e sabia-se de feridos que vinham do norte. Normalmente eram soldados que pisavam minas mas é provável que houvesse outros feridos por bala.

1965 foi o meu último ano de contacto com Moçambique. A partir daí as notícias que tinha eram de outra proveniência e todas preocupantes fosse de que ponto de vista fosse. A guerra traz sempre um extenso cortejo de vítimas  e por cada soldado português ferido ou morto havia um enorme número de vítimas negras entre eventuais guerrilheiros e população civil apanhada entre dois fogos e vítima de acções das duas partes (é bom que se diga isto porquanto há o hábito de “esquecer” que a guerrilha punia exemplarmente qualquer sinal de colaboração com os brancos (e acentuo a palavra brancos)mesmo se a coisa não passasse da natural obediência a quem percorria armado o território.

Agora, dessas paisagens que me diziam (e dizem) tanto, vem outra e trágicas notícias. A começar pela imagem de um Estado ausente, prepotente que precisa de tropas estrangeiras para fazer o que o exército moçambicano não sabe ou não pode fazer. E não faz nos territórios chegados ao Rovuma nem nas zonas de fixação de dezenas (ou centenas?) de milhares de fugitivos, de deslocados, de gente sem eira nem beira nem ramo de figueira. São sobretudo as ONG, as organizações religiosas (cristãs ou muçulmanas)e alguns heróis individuais quem tenta minorara trágica situação dos recolhidos a miseráveis campos de refugiados. O Estado finge que faz, mas faz realmente pouco. O poder da FRELIMO tem raízes no Sul, vive no Sul e abandonou há muito o Norte. Ou melhor, do Norte só espera os dinheiros do gás que agora secaram pela guerra.

Porém, eu não vinha falar de Moçambique mas de África, da África negra, subsaariana, da África onde não chegam as vacinas e onde o vírua se ceva à fartazana (sobretudo na República Sul Africana que é dos poucos países com infra estruturas sanitárias razoáveis mas que nem por isso se mostram especialmente eficazes.  

Em boa verdade, nem sequer temos notícias credíveis do avanço ou não da pandemia. A África negra é um buraco negro no universo, no nosso pequeno universo planetário. Quantos mortos se registam no Gabão? Ou nos Camarões? Ou no Sudão, nos dois Sudões?

As boas alminhas acusam, como não?, o Ocidente. E é verdade que as dádivas de vacinas são escassas mas também é verdade que as elites nacionais na maior parte destes países não cumprem os mínimos para combater a crise. Nem esta, nem as anteriores, nem a fome, os subdesenvolvimento, também endémico, a corrupção generalizada, o desgoverno, o desprezo pelos camponeses, pelos pobres, pelos “condenados da terra”.

E conviria lembrar que, com o terror da pandemia, as opiniões públicas do resto do mundo (e não só as ocidentais que são apesar de tudo as que mais ajudam) quer primeiro garantir a segunda dose, a terceira quiçá a quarta antes de mandar as vacinas de borla para “os pretos”.

Bem podem os mais generosos avisar que a pandemia tem de ser combatida planetariamente; que deixar bolsas gigantescas de humanos sem meios de fazer frente ao covid é permitir que apareçam  novas variantes; que a solidariedade é um dever.

Nada feito. E não é apenas  o egoísmo que evita as ajudas. É o medo. Um medo difuso que vai demorar muito tempo a desaparecer.

E convenhamos: nisto de combate à pandemia, há coisas que me arrepelam. No Brasil oito milhões e meio de pessoas faltaram à segunda toma. Nos Estados Unidos há minorias fortes pe pertinazes que recusam a vacina. Na União Indiana, ninguém sabe quantas vítimas de facto há. Nem quantas novas infecções. Da China nada se sabe. Ou seja, não é apenas a África que apresenta problemas. Só que aí tudo se complica desde a falta de Estado até à pobreza e ao desamparo gritantes.

E por favor, pelas alminhas, não me venham outra vez com a culpa do colonialismo. Há cinquenta anos acabaram as últimos colónias, que diabo!

E ente elites corruptas, indiferentes ou genocidas e elites que abandonam a pátria e se instalam na Europa (e não falo dos que se arriscam a vir por mar, sem nada a não ser o terror, a miséria de que fogem e a esperança de uma vida ligeiramente melhor -por exemplo comer todos os dias- Falo dos que abandonam os seus países e vem para cá fazer a crítica do Ocidente. Nas universidades, nos meios vagamente culturais, entre os “indignados” que os apadrinham mas também não ajudam especialmente. Se a sua energia tão exuberante na comunicação social e na indignação fosse aproveitada onde realmente é precisa, ou seja, lá, talvez as coisas melhorassem. Ou não!    

na vinheta: paisagem de Luanda!