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Incursões

Instância de Retemperação.

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liberdade vigiada 97

d'oliveira, 06.08.21

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Liberdade vigiada 98

“A salto” para Portugal

mcr,  Agosto, 2021-08-01

 

 

Os tempos são tão outros que o melhor é explicar o título da crónica. Dizia-se “a salto” quando alguém passava a fronteira, outro conceito já nebuloso para alguns portugueses, sem se dignar ir à alfandega e menos ainda ao posto de polícia que nela existia. Melhor dizendo: sair ou entrar no torrãozinho de açúcar não era exactamente a coisa mais fácil do mundo, sobretudo em se tratando de saídas. Pior, se as saídas diziam respeito a jovens em idade de servir a pátria.

Se não erro, chamavam-se a estes futuros elementos da carne para canhão (ou canhangulo que foi durante os primeiros tempos da guerra de África a arma mais comum dos insurrectos, uma espingarda primitiva com fraco poder de fogo carregada com o que estivesse à mão. De todo o modo, parece que,e m acertando no pobre soldadinho portuga, a coisa ficava feia. O meu saber nestas coisas é todo de ouvir dizer, a áfrica que durante três anos mais três longuíssimos períodos de férias ainda não tinha guerrilhas ou, no final, elas estavam longe) mancebos. Os mancebos por altura dos seus vinte anos iam à inspecção. Se depois de umas medidas o examinador os achava robustos, passavam a “prontos” e  ficavam a aguardar a sua chamada para integrar as fileiras do glorioso exército português.

Eu tive a sorte, a dupla sorte, de ir às inspecções um ano antes da eclosão do conflito angolano. Melhor dizendo, chatices e das gordas já por lá havia, a começar pela revolta da Baixa do Cassange que, se não erro ocorreu exactamente nos mesmos dias em que fui mancebo. Para não faltar muito latim: o médico, miliciano, que me inspecionou conhecia-me e perguntou-me qual a minha propensão militar. Respondi que nenhuma e graças à minha extrema magreza e à manipulação dos números que ele levou a cabo escapei por uma unha negra a uma coisa chamada “índice de Pignet (?)e fui solenemente declarado “livre” por um trio de velhos oficiais sentados ao funda da sala imensa do imenso casarão (que por acaso era um dos antigos “colégios  universitários mandados construir por D João III, um rei que foi pela sua acção um dos grandes protectores da Universidade, talvez o maior.)

A partir daí a minha relação com a tropa pautou-se pelo pagamento da “taxa militar” dever que, felicíssimo, cumpri até ao último tostão.

Os acontecimentos da baixa do Cassange, foram originados por uma revolta dos camponeses africanos que “trabalhavam” para uma grande companhia algodoeira e que, obviamente eram miseravelmente pagos. A tropa estacionada wm Angola chegou para a rebelião que não foi directamente fomentada por ninguém, ou melhor foram a fome, a humilhação, os maus tratos constantes, os roubos que fizeram o trabalho todo ou quase.

Os pobres negros foram chacinados pela tropa, bombardeados por quatro aviões (consta que houve napalm mas não garanto) e a coisa passou despercebida mesmo em Angola (a censura, claro) e completamente em Portugal. Eu vim a saber disto pelo Carlos MacMahon Vitória Pereira, meu amigo, angolano de uma das “gloriosas famílias# e obviamente militante independentista desde a primeira hora. Estávamos presos em Caxias (nós e mais trinta e oito estudantes de Coimbra por questões relativas à greve de 1962) e esses tempos exaltantes de cadeia foram uma escola de “revolucionários” (enfim, de revoltosos com motivação) A prisão faz do preso mais inocente um criminoso ou, como era o caso, um elemento perturbador da paz pública e podre do Estado Novo. O “Mac” já não está por cá, aliás por lá, em Angola onde teve, depois da independência altos cargos mais que merecidos. Era alguém dotado de uma inteligência rara, de uma jovialidade incomum, corajoso, gordo e cheio de sorte (até ganhou a lotaria!). Nu dia, desse cativeiro partilhado com alentejanos na cela ao lado direito, ferroviários grevistas na do esquerdo e malta da intentona de Beja que frequentava o recrio que dava para o corredor que separava as nossas duas celas do descampado. Comunicávamos com todos, aquilo naquela zona, longe da pide, era um bocado uma rebaldaria mesmo se nenhum de nós tivesse tido direito a recreio e as visitas fossem raras, curtas e minuciosamente vigiadas pela pidalhada.

Portanto, e para voltar à vaca fria, quem queria ganhar a vida ou quem estava até aqui com o sufoco do país cinzento, ou quem não queria fazer a guerra, “abria” para a estranja, fundamentalmente a França sem passaporte visado nem polícia a verificar se cumprira os seus deveres militares. Passava-se, pois “a salto”. Mais tarde já no início de 70, tornei-me “passador” graças ao meu querido, velho e excelente amigo Manuel Simas Santos, agora Conselheiro Jubilado do STJ. A bem dizer, foi a mulher dele (Cândida Alves, filha de um ex-combatente da guerra de Espanha na brigada Máximo Gorki, Astúrias, que contava histórias pasmosas dos seus tempos de combatente anti-franquista. O senhor Alves era vivo e despachado, conseguiu evadir-se de uma prisão espanhola onde estava preso depois de ter apanhado um tiro numa perna – que perdeu – e de ter fabricado um perna de pau e uma muleta!!!) quem lhe ensinou os caminhos da aventura e que mais tarde também, destemida e lindíssima passou o seu lote de fugitivos.

Agora que ao fim de crónica maior e mais chata que a espada de Afonso Henriques, já se sabe o que é “ a salto” vamos ao alto de há dias. Salto triplo, salto enorme, salto que valeu oiro. O saltador nasceu em Cuba mas já é cidadão português, pela parte dele (com a preciosa ajuda da mulher) já du dois novos cidadãos a um país que perdeu 200.000 em dez anos. O seu português ainda está muito “portunhol” mas já sabe de cor o hino nacional que cantou a plenos pulões no seu dia de glória. Com jeito deu-lhe um toque de “salsa” outro de “son” que essa malta afro-cubana é danadinha para a música e a dança.

A sua prestação desportiva, junta à de mais dois outros vencedores medalhados, mostra quanto o país tomou novas cores, cores de café com leite, cores tropicais cores que, segundo Leopold Sedar Senghor são beleza. (Mulher negra, mulher nua vestida com a tua cor que é beleza.... eu já por aqui puz o poema é questão de irem pacientemente vendo o blogue que logo e encontram. Senghor, um grande poeta senegalês e universal jura que o seu nome é uma corruptela do portuguesíssimo “Senhor”. Se sim ou não pouco importa mas tem graça termos também nós alguma mínima responsabilidade nesse imenso escritor que foi Presidente da República e saiu tranquilamente do poder, Tranquilamente e democraticamente!

Portugal tem nas suas gentes, e desde o século XVI,   muito sangue negro. Os escravos que vieram de África, por cá casaram, filharam (um velho verbo nosso, muito nosso) e pouco a pouco se foram perdendo na mole lusitana que, provavelmente também já teria o seu nico de sangue berbere que essa gente andou por cá séculos e alguns filhos há de ter feito.

Com a descolonização regressou (ou veio pela primeira vez) um milhão de “retornados, muitos deles, mulatos alguns negros enfim gente colorida  que pacificamente se reconverteu em gente metropolitana e a quem se deve, sobretudo no interior, muito e notório progresso. Aquilo era malta habituada a vida dura, capaz de desenvencilhar no meio do mato, onde a ajuda escasseia, gente que veio com uma mão à frente e outra atrás e que numa dúzia de anos se confundiu na população residente. Por cá não houve nada de comparável à terrível e dolorosa questão dos pied noirs da Argélia . Há que dizer, a bem da verdade, que a população residente em 74/76 também se mostrou generosa, compassiva, solitária o que será, pelo menos para mim, o mais extraordinário resultado de uma descolonização feita `às três pancadas, mal e porcamente. Mas isso ficará para alguma vez em que eu queira limpar (ajudr a limpar) as “estrebarias de Áugias” do processo político moderno português. Hoje, logo eu que não me interesso por atletismo, há que celebrar esses portugueses recentes ou menos recentes mas não de velha cepa, que superaram muita coisa, já nem falo da burrice infamante do racismo, mas tão só do olhar enviesado de alguns, e a seu modo, com enorme sacrifício ( e talento, muito talento, pois claro) encheram de alegria os mais fervorosos amantes do desporto.

Grande salto, caro novo compatriota, eis que provavelmente passaste definitivamente a fronteira portuguesa “a salto”.  Aliás já Cuba saíste a salto e bem que aquilo não é terra de esperança para ninguém. Terra, digo, poder político insisto que as pessoas correndo todos os riscos, e não sou poucos nem isentos de perigo, ainda há pouco encheu as ruas de quase todas as cidades falando em “Vida y Liberdade” slogan bem mais interessante que o estafado “Patria o muerte” que faz, desculpem la, lembrar aquele lúgubre pistoleiro espanhol que bramia “viva la muerte”. Os extremismos encontram-se a cada esquina...

Vai esta em memória de três africanos: Carlos Mac Mahon, António Neto (desaparecido durante a erupção nitista) meus amigos e Eusébio esse genial futebolista que há muitos, muitos, anos num jogo alucinante contra a Coreia do Norte pôs todos os que assistiam via televisão, em pé e aos urros. E eu, pouco dado ao “pedibola” urrei como os outros, comovi-me como os outros e provavelmente ter-me-ei emborrachado como os outros. Mais de alegria do que de álcool...

Não é só Grândola que é morena. É Portugal...

PS: e agora lembrei-me dos meus colegas do liceu Salazar (o Joaquim Chissano mas não só que havia o Faria, o Michel Kong Song,  o “Saka” ( Constantino Theodor Sakllerides) tudo gente do 2º e 3º C e, sobretudo, do Colégio Liceu Vasco da Gama em Nampula,1956, pretos, brancos, indianos, mulatos um chinês e sei lá quem mais.