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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

o leitor (im)penitente 193

d'oliveira, 18.10.15

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Les sanglots longs des violons d’automne…

(Verlaine chanson d’automne)

 

 

em boa verdade vivi em tempos escuros…

................

vós que haveis de surgir das cheias em que nos afundámos....

(Brecht aos que virão a nascer)

 

Uma leitura  feliz de “Os dias imensos” de Rui Namorado e lembrança comovida de Joaquim Namorado

 

(ponto de ordem:

sou amigo do Rui desde o longínquo ano de 1961; estivemos juntos em demasiadas batalhas (mas as necessárias) e até na cadeia de Caxias; partilhamos os dias exaltantes da greve de 69, continuámos esse longo combate por vários meios que incluíram a aventura editorial da “Centelha”, a conspiração permanente da continuação do “conge” (palavra inventada por ele), desmbarcámos no MES e desamparámos essa loja ao fim de ano e meio. Desiludidos mas não vencidos. E vamos continuando a dizer o que pensamos enquanto por cá andarmos. À sombra da recordação da utopia que alguma vez nos animou mesmo se temperada pela vida, pelo que ela faz de nós e pelo que nós fazemos dela. Desde esses anos de vinho e rosas, de chumbo e sonho, RN publicou escassamente seis livros de poemas: quase diria um por década de vida adulta. É pouco? É muito? É o que ele entendeu dever/poder dizer.

Por meu lado desde uma indefectível amizade há o grande gozo de o ler devagar e de me rever em muitos (não todos) poemas (é exactamente o que eu gostaria de dizer...)

Portanto isto não é uma crítica, sequer uma nota de leitura mas um par breve de observações para quem estiver disposto a continuar a frequentar os poetas)

 

Com o título “os dias imensos” (ed: lápis de memórias) publica Rui Namorado a sua sexta recolha de poemas. Em setenta e tal anos de vida não se pode dizer que seja um poeta regular frequentador dos escaparates das livrarias. Aliás, hoje, poetas em livrarias é mercadoria rara. A ganância dos editores poderosos, a difícil tarefa dos que ainda arriscam publicar poemas, a mediocridade do público que se sente mais atraído pelas estrelas da televisão e da política que enchem as sagetas da literatura de copiosos amontoados de palavra impressa, a cupidez de boa parte dos livreiros que só pensam em escoar o “material” fez com que a poesia, o teatro (pelo menos estes) fossem arredados das estantes por notória falta de rendimento. Saúde-se pois a coragem do editor lápis de memórias que assume o risco nada despiciendo de publicar um poemário.

 

Trata-se, numa primeira, breve e incompleta leitura, de uma percurso em três partes, vitais, diferentes mas conciliáveis, de uma aventura poética que prolonga sem exagero mas com lucidez, muito do que RN foi publicando desde as primeiras incursões em jornais e revistas estudantis, em antologias e manifestos (“poemas livres” ,“a poesia útil”) até ao primeiro título “Maio ausente”, (Vértice, Coimbra, 1970)

Namorado, que dedica este livro ao prodigioso Joaquim Namorado, seu tio e agitador perpétuo, alma da “vértice”, figura tutelar de uma série de tertúlias literárias e políticas coimbrãs, poeta inconvencional e crítico certeiro, homenageia o tio com um poema (rio Douro) que subtilmente refere outro do velho Senhor integrado no livro (A poesia útil, Coimbra, Vértice, 1966). Vale a pena ler estes dois poemas separados por quase cinquenta anos para poder perceber o que une e o que diferencia duas gerações que se reclamam do realismo poético.

“navegamos por dentro deste rio

no coração de Espanha e de outros mitos...”

 

O poeta António Manuel Lopes Dias (outro forçado cultor da escassez...) que apresentou no Porto o livro do seu amigo e companheiro de geração e de aventuras políticas e literárias centrou, muito bem e com rigor e inteligência, a sua intervenção na análise do dicionário poético de RN chamando a atenção para como o dito no poema acaba por se relacionar, contraditoriamente com o não dito ou melhor com o que as palavras revelam, no seu silêncio, na sua falta ou mais ainda na sua invocação.

Rui Namorado invoca as palavras desde o primeiro poema

“sobre os teus lábios dormem as palavras

que o tempo se esqueceu de nos dizer...”

.... “um silêncio desliza por dentro das palavras...”

...”acende-se ...o coração negros dos poetas

num gume de gelo e palavras mortas...”

 

e nessa invocação convida o leitor (aquele que lê o verso e o modifica insensivelmente) a partilhar a viagem por um outono (dele, nosso, geracional que, não sendo um acto de desistência, é todavia o reconhecimento de alguma “áspera verdade” histórica, social e política.

Para quem vem dos tempos escuros não passa despercebida esta reacção ao status quo actual e à realidade que indignando-nos ou não, provocando-nos, atingindo-nos confessa a derrota (temporária) de um par de utopias que nos guardaram no tempo das cheias (em que nos afundamos) de cairmos na tentação do conformismo.

Rui Namorado testemunha essa longa passagem dos dias e da angústia na parte terceira da recolha fazendo regressar os dias da esperança - e os da indignação – numa série de homenagens (entre elas Brecht – ou como tudo afinal anda ligado- a descoberta de Brecht pela nossa geração como aliás a de Rilke deve muito a Paulo Quintela seu esforçado e dedicado tradutor) entre elas Joaquim Namorado que, “fora da cartilha”, propunha aos jovens, ávidos, ansiosos, leitores que nós éramos alguns poetas que o politicamente correcto considerava com alguma (justificada) desconfiança. Pela parte que me toca foi de Joaquim Namorado o conselho para ler Saba, Salvatore Quasimodo (emprestou-me o seu próprio exemplar e assim me mergulhou na leitura do italiano) Seferis e Elitis (dois gregos que obtiveram posteriormente o Nobel ) René Char ou Éluard.

 

Não tenho por hábito enrodilhar tanto os textos em que vou falando de livros mas este tempo, este outono que suportamos com algum sangue frio obriga a referir com mais urgência do que prudência recomenda o testemunho de um poeta que nunca esqueceu a cidadania.

Ou para terminar com Rilke que também escreveu sobre o outono:

“Senhor é tempo. O Verão foi muito longo.

Lança tua sombra sobre os relógios de sol

e solta os ventos sobre as campinas.

...........................

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.

Quem agora está só, longo tempo o será,

fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas

e vagueará, de lá para cá, nas alamedas,

agitado, quando o vento arrasta as folhas

 

As citações de outros poetas são todas extraídas de traduções de Paulo Quintela.

A citação de Verlaine vai no original e diz muito à nossa geração que nasceu em épocas difíceis cujo fim foi anunciado pelos dois primeiros versos do poema que anunciavam a uma rede resistente francesa o início da invasão da Normandia.

Acrescente-se que a continuação do poema tem muito a ver com alguma da reflexão poética de Rui Namorado

(je me souviens

des jours anciens

et je pleure

et je m’en vais

au vent mauvais

qui m’emporte

de çà et de là

pareil a la feuille morte)

 

 

 

 

 

 

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