o leitor (im)penitente 208
Eduardo Guerra Carneiro, o cometa suicida
mcr 1 Ago 18
Terá sido em 61 ou 62 que um rapaz louro, olho azul e míope, ternurento e loquaz nos arribou a uma mesa do Mandarim (em Coimbra e na Praça da República, epicentro da vida estudantil). Na mesa a tertúlia variava consoante as horas, os dias e as manias de cada um. De todo o modo, assíduos entre os assíduos, encontravam-se, além de mim, o Eduardo Batarda e o Zé Carlos Monteiro da Costa. Este último, sobretudo ele, adoptou o recém-chegado imediatamente. ZC era um tipo culto, dotado de um humor inteligente e certeiro, de uma ironia educada e afável e, na altura um descobridor de novos autores. A ele devo a s primeiras leituras de Borges, por exemplo. Ainda por cima era casado o que significava uma casa onde se podia ir a qualquer hora do dia ou, muitas vezes, terminar uma noitada.
O Eduardo apareceu já carregado com o seu livrinho de estreia (O Perfil da Estátua) que rapidamente foi esquecido ( o meu exemplar deve ter-se evaporado nas mãos de algum amigo das bibliotecas alheias, coisa aliás que se repetiu com mais títulos de EGC que, contudo, e com grande trabalho, voltei a comprar.
Mantivemos ao longo de muitos anos um contacto irregular mas pontuado por momentos fortes. Encontros aqui e ali, fundamentalmente em Lisboa, algumas cartas sobretudo quando aparecia um novo livro dele ou alguma crónica mais impressiva (e foram muitas) nos jornais. Nesses casos, eu optava por telefonar-lhe para lhe dizer o quanto apreciara aquela prosa ágil, certeira, coloquial mesmo se muitas vezes poética. O Eduardo, nessas alturas, ficava enternecido e agradecia espantado com o meu entusiasmo por aquilo que, finalmente, era um pouco o seu dia a dia nos jornais. E contava-me tremendas paixões que iam acontecendo com uma extraordinária regularidade. “Eduardo, tu tens musas a mais dão para sete vidas, pá!”
Todavia, nos derradeiros anos de vida, as coisas começaram a ser difíceis. Nos últimos anos do século passado, sucedia encontrarmo-nos no “Snob” um bar simpático à Rª do Século, vizinho da rua onde ele morava cujo surpreendente nome nunca esqueci: rua do Abarracamento de Peniche. Foi o Zé Quitério, outro pilar do bom jornalismo e do Snob quem me informou que esta toponímia derivava do facto de nesse local ter havido um acampamento de tropas da guarnição de Peniche mandadas vir para Lisboa para conter as desordens e a ladroagem que se seguiram ao grande terramoto. Si non e vero..
O Eduardo alcoolizara-se dramaticamente e havia tardes e noites em que mal se tinha de pé. Era um destroço de si próprio. Os próprios empregadores começavam a escassear mesmo se, sóbrio pela manhã ele conseguia escrever tão bem como nunca.
Em 2002, os jornais trouxeram a notícia não demasiado inesperada mas de todo o modo pungente. Eduardo Guerra Carneiro, jornalista e poeta suicidara-se atirando-se da janela de sua casa.
Jorge da Silva Melo, outro comum amigo, numa crónica de enorme qualidade noticiou esta morte sob o título notabilíssimo de “O poeta que se atirou para as estrelas”.
Nesta dúzia e meia de anos que se seguiram, EGC apenas revivia na memória de amigos e leitores. Raras, raríssimas, vezes encontrei títulos seus em alfarrabistas ou leilões. Quem tinha os livros, guardava-os (guarda-os) a bom recato.
Agora, sai uma boa antologia dos seus poemas com o título tão eduardiano de “Mil e outras noites”. Leitras e leitores, vão pela obra que a edição (bonita e cuidada, com um prefácio e um posfácio ambos de Vítor Silva Tavares, o pai da editora “& etc”, desaparecido vai um par de anos, que se devem ler com vagar, atenção e prazer: VST no seu melhor...) é de pequena tiragem (300 exemplares) e neste momento os portugueses estão mais para férias e especulação imobiliária de esquerda, a virtuosa que a outra é própria de senhorios maus e malandros. “É assim que se faz a história” (título de um dos melhores livros de Eduardo Guerra Carneiro...
na foto: Eduardo Guerra Carneiro