o leitor (im)penitente 212
Aventuras com livros
mcr, 11,9,19
Já nem sei quando começou esta doença, pois que de doença se trata. Entre mim e a livralhada há uma paixão (correspondida ou não, pouco importa) assolapada que vem desde a mais tenra infância, ou melhor desde o momento em que sentava junto dos meus pobres pais e li em voz alta livrinhos. Não recordo os títulos mas estou ainda a vê-los, muito bem ilustrados, capas duras e histórias simples desde a de uma criadinha holandesa com tamancos e tudo que encerava as escadas com tal afinco que o seu rubicundo patão escorregava e se estatelava mais abaixo sem, contudo, se zangar até outra que metia o pássaro roc e me aterrorizava. Eram edições brasileiras, muito bem feitas e e já tinham servido ao meu pai. Onde pararão (se ainda tem forma) esses livros lindíssimos? E onde pararão dezenas de outros com que me cruzei ao longo de uma vida que já vai longa?
Tudo isto, e o que virá a seguir, me passou pela cabeça quando um velho e excelente amigo me veio devolver um dos dois tomos da “Prosa Completa” volume 1 de Jorge Luís Borges (Brughera, 1980, prémio nacional de literatura “Miguel de Cervantes, 1979). É uma excelente edição, apresentada em caixa própria e não lhe conheço sequência. De todo o modo convem começar por saudar a devoluçãoo de um livro que se emprestou. Digamos que não sendo um caso exactamente raro também não é tão frequente quanto deveria ser.
A minha biblioteca foi vítima de frequentes “esquecimentos” por parte de pessoas que dali levaram livros emprestados. E alguns desses esquecimentos foram terríveis. Assim perdi a “Electronicolírica” do Herberto Helder livro que nos alfarrabistas anda (quando aparece) por preços estratosféricos, duas obras de Eduardo Guerra Carneiro, entre elas o livro de estreia (fraquinho) “O perfil da estátua”, “Passage de l’homme” de Marius Grout, premio goncourt de 1943 e considerado o primeiro verdadeiro romance surrealista. Este livro desapareceu pelo menos duas vezes da estante e foi o cabo dos trabalhos encontrar outro exemplar. E por aí fora...
Na lista de livros desaparecidos cabe também referir os que a PIDE m foi levando ao longo dos anos. A cada prisão corresponde mais uma lista ou nem isso pois com o tempo as pessoas tendem a esquecer-se da rapina policial. Ou então, quando se voltava a casa, era tal o alívio que a última coisa em que se pensava era em ir ver os buracos na estante. O mais curioso é que na longa lista de livros que me confiscaram não entra nenhum dos chamados “clássicos” marxistas. Que sempre estiveram a bom recato. A polícia, aquela polícia, confiava as buscas a agentes de segunda ou terceira categoria que se fiavam apenas nos títulos, na língua (livros estrangeiros eram sempre um bom alvo) ou nos nomes dos autores. Autor que cheirasse a russo ia para o cesto.
O caso mais curioso que se passou com este vosso criado teve mesmo algo de extraordinário. Nos fins de sessenta, princípios de setenta, organizei para a editora “centelha” de Coimbra uma antologia sobre o movimento “Black Panther”. Com Maria João Delgado, na altura minha mulher escolhemos uma meia dúzia de pequenos ensaios e aí vai disto. Ainda o livro não estava sequer publicado e eis que a polícia começa a procura-lo. Sendo certo que aquela gentinha ainda não tinha o dom da adivinhação. Ficámos, os da centelha, perplexos. Soubemos, depois, que numa rusga a uma tipografia os agentes tinham encontrado já prontas umas dezenas de capas e isso bastou para lhes aguçar o apetite. Como havia a precaução de diversificar os pontos de produção não encontraram os textos. De todo o modo, a coisa foi logo proibida o que, julgo, foi uma novidade absoluta e um record.
Nesta história de pilhagens policiais, houve um pequeno episódio que merece ser lembrado. Da última vez que fui intimidado para ir prestar declarações à PIDE, os agentes que me visitaram em casa de meus sogros, olharam para a abundante biblioteca de Jorge Delgado, meu sogro e comentaram algo deste género: “agora não temos tempo a perder, mas de certeza que se fazia aqui uma bela colheita de livros proibidos”. E, em boa verdade, se tivessem sequer olhado cinco minutos para as estantes teriam verificado que aquilo iria tudo ,mas mesmo tudo. O Jorge Delgado não perdia tempo com outros livros que não fossem de política. E, obviamente, da que não agradava ao regime dos falecidos Salazar e Caetano... Nunca vi uma biblioteca tão subversiva como a dele, nunca!
Voltemos porem aos livros que desaparecem das estantes, no caso das minhas. Um dos meus melhores amigos era o Pedro Sá Carneiro Figueiredo, leitor voraz, homem cultíssimo, mais distraído do que uma amêijoa melancólica e completamente desorganizado. Ia sempre jogar bridge em minha casa e, de cada vez trazia alguns livros que eu lhe emprestara e levava outros. Nem sempre trazia os mesmos que levara na vez anterior mas isso não o preocupava e também não me punha em cuidado. Com o Pedro valia tudo e eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele traria o livro entretanto perdido em sua casa. Todavia, o destino infame e brutal, irrompeu neste vai e vem livreiro e o Pedro morreu subitamente. Durante anos, a viúva ia-me encontrando e trazendo livros que ela ia descobrindo nas estantes caóticas do Pedro. Verdade e diga que a culpa não lhe só a ele. Parece que para combater a desordem do Pedro, uma empregada excelente mas analfabeta sempre que via um livro em cima de uma mesa ou de uma cadeira agarrava nele e enfiava-o no primeiro buraco de estante que encontrasse. E o pobre livro passava à mais obscura clandestinidade pois, só por acaso é que iriam por ele no sítio onde uma mão descuidada mas amante da ordem o pusera.
Uma vez em que referia alguns desaparecimentos de livros numa roda de amigos, alguém disse que os livros eram vagabundos que saiam de casa pelo seu pé.
Retorqui, irritado, que pelo pé deles nenhum viajara mas sim e só pela mão de alguém amiga do alheio.
*a estampa: capa do livro "Os Panteras Negras" que, mesmo proibido preventivamente, saiu, foi clandestinamente distribuído e, do mesmo modo furtivo, vendido. Se não erro, este foi um dos 32 livros proibidos à Cntelha entre 1970 e 1974. A polícia não dava tréguas e nós também não!