o leitor (im)penitente 212
Kundera, um europeu, um grande escritor e um homem de coragem
mcr, 13-7-23
A morte de milan Kundera não apanha ninguém desprevenido. A idade (94 anos) era muita e se alguma coisa nos surpreende é a sua longevidade.
De todo o modo deixa uma obra notabilíssima e pode ser apontado como um dos grandes romancistas do século passado.
Teve, para além das vicissitudes da escrita que é sempre uma companheira difícil, uma vida de cidadão que, no mínimo, se pode caracterizar de complicada.
Nascido no Leste europeu, mais precisamente na Checoslováquia, viu o seu país ser implacavelmente agredido por Hitl e por duas vezes. Na primeira (e com a cumplicidade da maioria da população de origem alemã estabelecida nos Sudetas e depois com a pura e simples invasão e semi-anexação do resto do país.
A”libertação” operada pelo Exército Vermelho no seu impetuoso avanço contra Berlin foi sol de pouca dura. Ficou como um clássico da conquista do poder por dentro a teoria dita do “golpe de Praga”.
Convirá lembrar que boa parte dos intelectuais checos apoiaram ou, pelo menos, não se opuseram ao golpe comunista contra um Governo livremente eleito e de características demo-liberais. As razões são várias mas a principal foi a miserável anuência da Inglaterra e da França (e o silêncio cúmplice de quase todos os outros europeus) às exigências de Hitler. Não admira que a URSS entre 45 e 48 se tivesse tornado aos olhos de muitos o garante de uma liberdade que cedo se mostrou implacável.
Se Kundera aceitou ou até defendeu essa reviravolta, não faço a mínima ideia se bem que tudo indique que enquanto militante comunista a defendeu. Todavia, poucos anos depois foi pela primeira vez expulso do PC checo. Readmitido alguns anos depois, de pouco durou essa renovada crença nos benefícios do poder dito socialista.
E é de um dos seus primeiros romances que vale a pena falar pois a critica ao regime e aos constrangimentos que impunha for irónica mas expressivamente revelada em “A brincadeira”, livro que descobri pouco antes da “Primavera de Praga”, já Kundera voltara a ser expulso do partido. Não admira que durante esses exaltantes meses de 68 ele se tenha distinguido como um dos principais apoiante da tímida tentativa de Dubcek e que depois, com o regresso da “ditadura do proletariado” à moda soviética, a vida se lhe tenha tornado impossível no país Natal.
Kundera exila-se, vai para França e é daí que a sua obra vai ganhando espessura e a sua famas e consolida. O Nobel , como sucede a tantos, não o distinguirá e não deixa de ser curioso que quando se lembraram da literatura checa preferiram premiar Jaroslav Seifert (poeta de resto excelente mas quase desconhecido fora do seu país) esquecendo os grandes romancistas de que apenas cito Hrabal outro opositor ao governo checo.
A propósito Borges, que à época teria 85 anos, terá afirmado que “felizmente a academia sueca tinha premiado um jovem (de 84 anos).
É conhecida a simpatia de Kundera por alguns autores que fazem muito parte cá de casa, Rabelais ou Hasek o imortal pai de Schveik esse absurdo anti-heroi que mereceu mesmo uma espécie de continuação servida por Brecht.
Desconheço se a última edição portuguesa do “Bom Soldado...” já está conforme com o original. De facto, este livro memorável, foi publicado em Portugal (Portugália, 1961) numa edição provavelmente baseada na francesa e consideravelmente reduzida. Mais tarde, depois de comprar vários acrescentos em várias línguas cheguei finalmente a uma edição espanhola da “galáxia gutemberg” com 765 páginas que está completa pois compreende os últimos textos do “soldado” (fins de 1922. Hasek morreu a 3 de Janeiro do ano seguinte ).
Tudo isto para lembrar que à semelhança de Hasek, Kundera foi alvo de traduções um pouco “olé, olé” que o obrigaram mais tarde a ser ele próprio o seu tradutor para francês.
Do mesmo mal padeceu Rabelais que foi traduzido do seu gostoso mas difícil francês do sec.XVI para o francês moderno sofrendo também de consideráveis dentadas. Esperemos que a tradução que agora se anuncia para português. seja realmente integral.
(e confesso que provavelmente não resistirei a mais esta edição mesmo tendo uma boa meia dúzia delas todas em francês original ou moderno )
Quem me lê habitualmente sabe que aqui apenas se referem livros e autores lidos mas sem qualquer aparato crítico. Deixei-me disso há muitos, muitos, anos e basta-me chamar a atenção para os livros sem pôr já óculos escuros ou claros aos leitores que não precisam de críticas para ler os livros.
Isto é só um folhetim, um escrito efémero nada mais.