o leitor (im)penitente 216

Indomável!
Vasco Pulido Valente
(“Não o teres derrubado ídolos mas tê-los derrubado em ti eis a tua vitória” – Nietzsche)
mcr (Fevereiro de 2020)
Conheci-o durante a crise académica de 62. Eu e o Carlos Bravo fôramos encarregados pela Direcção Geral da Associação Académica de fazer de correios entre Coimbra e Lisboa e isso permitiu-me conhecer muita gente na Universidade de Lisboa incluindo, grata lembrança, a extraordinária Noémia de Sousa, poetisa moçambicana que estará entre as três melhores vozes poéticas de toda a África lusófona desses anos terríveis. A Noémia não era estudante mas aparecia muito pela cantina do Técnico, vizinha com a Casa dos Estudantes do Império.
Todavia, deixemos para outra ocasião uma incursão na literatura africana de expressão portuguesa e voltemos ao tema fundamental: Vasco Pulido Valente.
Vi-o pela primeira vez numa assembleia geral na faculdade de letras onde era aluno. Fiquei nessa altura muito bem impressionado pelo seu tom, a sua vivacidade e a sua clareza. Eu vinha de Coimbra onde se cultivava ainda, à sombra de Antero, uma eloquência muito século XIX. VPV usava frases curtas, argumentava com uma pitada de humor e não apelava ao sentimento mas sobretudo, já nessa época, à razão. Em boa verdade, eu talvez já o conhecesse dado que ele pertenceu à equipa fabulosa que fez o “Almanaque” (Outono de 1959 – Verão de 1961, 18 números) onde pontificavam alguns dos melhores desde o José Cardoso Pires, a José Cutileiro e, Luís de Stau Monteiro, Pertencer a este clube já dizia muito de um rapaz que nem 18 anos ainda tinha.
Depois, li-o em “O tempo e o modo” que, na sua primeira e melhor fase, também não arregimentava medíocres, sofríveis ou sequer bonzinhos. Desapareceu-me do radar leitor provavelmente por ter ido para Oxford onde se doutorou.
E é a partir de 1974 que VPV se torna um cronista que raramente perdi de vista. Um cronista e um escritor pois vejo agora que é de 1974, o primeiro dos (17) livros que tenho dele. Era um pequeno ensaio com o título “As duas tácticas da monarquia perante a revolução” (edições D Quixote, 1974). Em poucas frases, num estilo já inconfundível (ele dizia “pimpão”) explicava algo que muitos colegas e confrades demoravam duzentas páginas...
A obra escrita divide-se em dois campos: os ensaios de História e as recolhas de crónicas publicadas ao longo de quase cinquenta anos. No primeiro aparecem obviamente os textos que melhor mostram a sua profunda erudição (desde “O Poder e o povo” até ao – para mim – excepcional “Ir para o Maneta” sem esquecer “Glória”ou “Um herói português”.
No campo dos segundos coligem-se crónicas publicadas quase ininterruptamente durante o mesmo período. Trata-se de escolhas (não constam todas as que escreveu) e nelas perpassa não só um a funda ironia, alguma causticidade mas sobretudo um conhecimento profundo do país e dos seus desastres. Tudo servido por um estilo cintilante mesclado com algum (bastante) humor e ancorado numa língua segura. Limpa e usada com grande mestria.
Costuma dizer-se que um estilo claro dá imenso trabalho e é prova de uma cabeça muito bem organizada. VPV foi, no ultimo quarto do sec XX e primeiro do XX!, um claro e o melhor exemplo disso. Não há nestes quase cinquenta anos nenhum outro cronista (exceptuando Manuel António Pina, num registo profundamente diferente, aliás) que se lhe assemelhe e, sobretudo, que tenha durado tanto tempo com o favor de inúmeros leitores. E os jornais bem sabiam isso: VPV nunca mendigou uma coluna jornalística, bem pelo contrário.
Uma tão grande carreira cronística implica obviamente não só a criação de uma legião de admiradores mas outra, também robusta, de adversários, na generalidade políticos paroquiais que se persignavam metaforicamente a cada passo: que VPV era um adepto do “bota-abaixismo”, “petulante”, ”amargo”, “pessimista” sei lá mais o quê. Mas liam-no a cada passo, havia mesmo os que tentavam responder e até apareceu um pobre diabo que tolamente prometeu umas bofetadas! Em boa hora o fez porquanto o escândalo foi tal que lhe retiraram um cargo ministerial para o qual lhe faltava tudo desde conhecimentos até habilidade, inteligência e competência.
O grande problema de quase todos os criticados era que a frechada de VPV acertava fundo e não vinha inquinada de vã maledicência mas obrigava a pensar.
Fora deste foro de literatura e de combate jornalístico, fica o homem que nunca vergou e tão pouco se acomodou. Mesmo não dando grande importância ao adolescente que foi mandado para um colégio interno (e só quem, como eu, os frequentou naqueles tempos é que sabe que género de prisão aquilo era...) há o estudante universitário que “faz” 62, o jovem que milita no M.A.R. (Movimento de Acção Revolucionária) onde participaram Jorge Sampaio, João Cravinho, Nuno Brederode entre outros (e só nomeio estes pela proximidade à crise de 62) o Secretário de Estado da Cultura de Sá Carneiro que suscitou uma feroz resistência entre muito intelectual ligado aos meios artísticos e sobretudo à mediocridade artística que imperou (e impera) naqueles anos difíceis em que o talento, a criatividade e a inteligência eram postergados por tonitruantes posturas políticas que pretendiam – mesmo sem o conhecer –salvar o “Povo” de que desconheciam tudo. Durou pouco o seu consulado e menos ainda durou como deputado. À primeira advertência sobre a obrigação de votar de certa maneira numa questão menor, saiu batendo com a porta.
Todavia, esta liberdade aumentada (uma vez alijada a sinecura parlamentar) não modificou em nada o seu percurso de cronista ou seu “cursus honorum” académico. Ficaram pelo caminho alguns projectos e eu lamento muito uma biografia de Eça que ele terá pensado levar a cabo. De todo o modo aí estão os dezassete livros (creio que haverá mais um mas não tenho a certeza) quase todos esgotados (o que também prova o interesse dos leitores).
Na hora da sua morte, sucedem-se as homenagens (algumas surpreendentes) e também um que outro desabafo escondido com o rabo de fora. O homem morreu mas as pequenas raivas ainda ficaram por aí.
Como leitor assíduo foram muitas as vezes em que discordei, me agastei mas nunca perdi de vista o estilo notabilíssimo e o desafio que o que ele defendia (ou atacava) me impunha. Estou-lhe grato por essa conversa à distância não só porque me permitiu perceber s razões da minha desconformidade como como alguns dos seus argumentos e conhecimento melhoraram a minha visão do mundo.
E é curioso notar que VPV conseguia desagradar a alguma (alegada) Esquerda que se sentia desconfortável com as suas análises mas também a uma forte fatia da Direita que não lhe tolerava a liberdade e a crítica impiedosa a grande parte dos mitos fundadores de que se alimenta(va).
VPV, como acima disse, colaborou no notabilíssimo “Almanaque”. Num dos seus números havia uma ilustração e uma frase a condizer “para onde apontam estes monumentos? – Para sua própria monumentalidade!” (cito de memória com preguiça de subir até à estante onde jaz a minha colecção).
VPV foi um “empecheur de tourner en rond” ele que me desculpe este francesismo aplicado a alguém tão imbuído duma sã cultura anglo-saxónica!) e nunca foi à bola com os “monumentos” indígenas. Em boa hora!...
*na imagem: escriba (Egipto) ou de como e por muitas vezes, a função de escrever foi honrada.