o leitor (im)penitente 223
Livros para tudo e... para nada
mcr, 25.10.21
Saiu mais uma edição portuguesa da Divina comédia (que de facto foi baptizada pelo seu autor como “comédia”. Todavia, a admiração, a surpresa e o espanto de alguns leitores, seguramente muitos, uma multidão, foi tal que quando alguém lhe apôs o “divina” ninguém resistiu e a desde esse dia, este magnifico fruto da imaginação dantesca ficou divino, aliás divina. Os leitores são como os clientes das tascas honradas: tem sempre razão.
E ninguém se admire com esta imagem das tascas, hoje reconvertidas em kitsch horrendo de bares e outras fantasias onde o álcool se vende. Foi fielding, o imortal autor de “tom Jones” outro livro que atravessa séculos sem perder o brilho, que comparou o escritor a um taberneiro que, em vendendo coisa fraca por boa, logo perde a freguesia. Não é bem assim (a citação e a verdade dos factos) mas eu assino por baixo. Já meu mestre e amigo Joaquim Namorado, dizia que a única obrigação de quem escrevia na “Vértice” era a de ser claro, clarinho, de modo a que o leitor pagante entendesse à primeira o que o autor dizia ou queria dizer.
Entretanto, a lição do velho e respeitado neo-realista perdeu-se e nos jornais leem-se autênticos labirintos de palavras encadeadas que raras vezes querem dizer coisa de jeito e sobretudo mostram que a cabecinha do escrevente é um deserto de gelo.
Eu, leitor obsessivo e (imp)enitente comecei o dante em italiano, enrascado vezes sem conta, perdido outras muitas mais mas teimoso como uma honrada mula espanhola. Só depois, quando apareceu a tradução, aliás magnífica do Vasco Graça Moura (eu digo “do” Vasco porque fomos amigos e ele generosamente, nos meus começos de advocacia, sempre me ajudou. Irritaram-me muitas das suas crónicas mas nunca lhe neguei a inteligência, o humor, a irreverência, o cuidado posto nas traduções e a criatividade poética. E a sua forte cultura, quer literária quer musical quer pictórica. E raras vezes vi alguém ser tão digno quanto ele, no momento em que bateu a porta da RTP devido ao facto desta aceitar como boas umas críticas imbecis contra a exibição do filme “pato com laranja”. O motivo eram dois ou três fotogramas onde uns belíssimos seios apareciam gloriosamente nus. Uma escassa dúzia de devotos protestou e a televisão deu-lhe ouvidos!... E o Vasco, ala que se faz tarde.)
Bem, tudo isto, menos os circunlóquios, defeito antigo meu, vem a propósito de uma tradução, pelos vistos, louvadíssima de Jorge Vaz de Carvalho. É claro que o anjo mau e livresco que me sopra propostas indecentes ao ouvido direito, me convida a comprar mais outra edição do livro. Ora eu já tenho 5 edições desde o Graça Moura, até uma lindíssima italiana com desenhos de Boticelli, passando por outra minúscula, de bolso que já não consigo ler. Isso, e a falta cada vez mais pungente de espaço ajudar-me-ão, espero, a vencer mais essa tentação.
No momento em que escrevo, cai-me o olho cansado num número hors série de “Le Point”. São 98 páginas sobre Frédéric Dard “San Antonio personanages, langue, philosophie” (ou como diz também a capa “le genial universo de F D”
Eu tomei conhecimento com este autor e com uma boa centena de romances mais ou menos policiais, graças a um amigo italiano, sardo, especialista em restauração. que, naquela época corria a europa para se familiarizar com as línguas mais importantes. Já tinha feito a Inglaterra e a França onde descobrira San Antonio e encontramo-nos em Berlin, ambos estudantes de alemão no Goethe.
A princípio desconfiei daqueles livros, com capas de romance de “gare ferroviária”. Porém, a linguagem era espantosa, vibrante, inventiva, oh quão inventiva e inventada! E havia humor às mãos cheias, um pequeno fundo de erotismo e aventuras rocambolescas. Eu, em 1970, ainda era muito “dogmático”, quase um “ortodoxo (para não dizer um ortorrômbico”)Vinha de um país triste e cinzento, de um presente sem futuro e, francamente, a RDA onde íamos frequentemente almoçar ou ver os extraordinários museus, anunciava-me se tudo corresse como se esperava um futuro pouco risonho, cinzento também. Todavia, o facto de estar uns meses fora da pátria madrasta, o “berliner Luft” (o ar de Berlin, ocidental e cheio de vida) e o encontro com gente de outros sítios ajudou muito. E, pouco a pouco fui cedendo à loucura admirável de Dard, aliás San Antonio. Ou vice-versa. Hoje possuo umas dezenas de romances (o que aliás não representará sequer 30% da produção do autor, tenho um Dicionário gordo e universitário sobre o homem e há notícia de uma boa dúzia de teses universitárias. Ou seja, o autor, popular e brejeiro, converteu-se num tema sério estudioso vários anos após a sua morte. Confesso que, depois de ter ouvidas algumas (des vertes et pas mures...) críticas a esta minha grosseira inclinação, sinto uma certa satisfação vingativa.
Isto, aliás ocorreu-me com várias outras leituras (nem falo do Verne e do Salgari) como por exemplo o “Catalogue des objects introuvables” de um certo Carelman, homem de transbordante e delirante imaginação que no final dos anos 60 montou uma exposição com objecto, criados por ele evidentemente, absolutamente inexistentes ou inúteis como o preservativ em renda (que também se faria, por encomenda “em ponto de Alençon, de Bruges e de Bruxelas. Elegante e refinado” ((da legenda)) ) Trouxe o catálogo ainda numa 1ª versão modesta de Paris (1969) mas não resisti à versão definitiva e de luxo da mesma editora (Balland) já dos anos 80.
Os meus amigos, endurecidos pela crise de 69 acharam aquilo uma esquisitice quando não uma perversão cultural e política. Não foram precisos muitos anos para assegurar a perenidade de Carelman e para esconder, ou escurecer, muitos dos “maitres a penser” desses anos de brasa.
Tenho umas prateleiras cheias de títulos delirantes, que me enche(ra)m de gozo e que algum dia publicarei como obras a ler impreterivelmente para não levar demasiado a sério o que se escreve e edita.
E entre elas, claro, o impagável tratado do abade Louis Betelheem, “Romans a lire &romans a proscrire” (essai de classification au point de vue moral des principaux romans et romanciers de notre époque(1880-1908)avec notes et indications practiques) de que tenho a 4ª edição (1908) dada à estampa em Cambrai, pela casa Oscar Masson, rue de Noyon, 13. São 382 páginas que o meu amigo Y me obrigou a mandar fotocopiar para ele se poder regalar. O sacaninha ainda por cima avisou que não aceitava umas fotocópias merdosas em papel merdoso mas coisa que se visse. Gastei um dinheirão e ele, volta que não volta, telefona a dizer que já conseguiu o livro X ou Y do inventário das obras “más. Devo esclarecer que nos centos de autores proscritos há uma imensa maioria de absolutos desconhecidos, pelo menos para nós. Só o alucinado Y se lembraria de os desenterrar do merecido cemitério onde caíram não por obra do abade mas apenas pela do tempo.
Não há livros maus mas apenas livros à procura do leitor desconhecido que os lerá com carinho, entusiasmo e emoção.
* A vinheta é obviamente da autoria de Carelman. Não será exactamente o que se esperaria de um leitor apaixonado por Dante mas tenho por certo que isso não levaria o florentino ilustre a enviar-me para o inferno.