o leitor (im)penitente 257
ÌTACA
Konstantinos Kaváfis (1863-1933)
Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.
Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.
Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.
Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas
(Tradução: Isis Borges B. da Fonseca: Poemas de Konstantinos Kaváfis, São Paulo, Odysseus, 2006, p. 100-3)
A minha amiga Zé C. manda-me um mail jurando amor profundo e enternecido pelo por Kavafis e especialmente pelo poema acima transcrito que por preguiça ancestral e profunda fui buscar à Internet. De certo modo, fiquei surpreendido porquanto, anda na RTP 2 uma excelente série dominical da autoria do professor doutor José Pedro Serra dedicada à cultura clássica grega, em especial aos mitos. Ora não vai há muitas semanas referiu-se ele a Olisseus (Odisseus) e no fim do programa recitou a poema que acima deixei em versão brasileira.
Fiquei espantado pelo facto da Zé o citar por inteiro num recentíssimo mail mas dela já nada me espanta que o diabo da mulher andou a aprender persa no último ano e agora andará no urdu ou noutra língua qualquer desde que antiga e dessas terras em que Cristo não terá nunca passado.
E, subitamente, vi-me a mim, pequeno mas desembaraçado, na Biblioteca Pública Municipal Fernandes Tomás na Figueira a ler desenfreadamente tudo o que me passava pela linha de horizonte. Assim, marcharam os Salgaris todos (que agora aqui tenho quase completos...) os tarzans do Edgar Rice Burrougs, os Lagardere (Paul Fºeval) os Dumas e mais uma série de outros de que já só recordo o prazer, o enternecimento o espanto e a curiosidade por terras longínquas e extraordinárias. Boa parte do meu gosto por Geografia virá daí. Foi Júlio Verne (que também cá canta em várias edições e formatos) quem me meteu nesses assados com a forte ajuda de meu pai de quem, de resto, herdei vários exemplares, depois perdidos no acaso de mudanças de casa, de cidade de país e de continente. No meio desta biblioteca avidamente lida na minha pré-adolescência, também não falou uma série de obras importantes em versão infanto-juvenil e da autoria de João de Barros e de Adolfo Simões Muller. E entre elas, claro, a Odisseia.
Como curiosidade suplementar a minha avó Aldina, inveterada contadora de histórias, certo dia contou-me uma em que um gigante chamado Olharapo que, à semelhança de Polifemo, só tinha um olho no meio da testa. Ao que me lembro, muito mais tarde, ela ter-me-á dito que essa história lhe fora contada por uma escrava negra vinda do Brasil no séquito do meu trisavô José da Costa Alemão, um dos muitos portugueses que não aceitaram servir como soldados numa guerra imbecil movida pelo Brasil já independente contra o Uruguai ou o Paraguai Esses portugueses passaram a ser mal vistos e pior tratados pelos brasileiros e conseguiram que o governo português da época lhes fornecesse barcos para saírem do Brasil e virem estabelecer-se no sul de Angola. Foram eles que fundaram a Chibia e as terras próximas e, mais tarde o Lubango (Sá da Bandeira). Da história só me resta o nome “olharapo” mas na versão da avó ele era tão mau quanto o horrendo cíclope de Homero.
Essa minha primeira entrevista com os gregos continuou vida fora até já crescidinho mas ainda liceal ler as versões da Sá da Costa. E agora as do Frederico Lourenço, esse homem providencial que tem traduzido amorosa, pacientemente e com um raro tino para a escrita elegante, Homero e a Bíblia (a grega, claro, a boa, a autentica, a primeira) e uma série de poemas,
Ora, nos finais dos sessenta, lá para 68, ano mágico, descobri um cavalheiro de excelente estirpe chamado Lawrence Durrell. E descobri-o, eu e muitos outros dessa época, graças a um tetralogia (“Justine”, “Clea”, “Baltazar” e “Mountolive”), o “Quareto de Alexandria”. Aquilo foi tiro e queda de tão bom que era. Tronei-me obviamente um fanático de Durrell mas, aqui à puridade, sou fanático de tantos escritores que a coisa sai desvalorizada.
Ora, foi no “quarteto...” que pela primeira vez ouvi falar de Kavafis um eminentíssimo poeta grego que com Elitis Ritsos e Palamas são o meu quarteto de gregos modernos
Devo dizer em meu abono que sou de uma curiosidade infatigável quando se trata de livros. Não descansei enquanto não deitei a mão ao citado Kavafis que foi editado pela Inova, logo em 1970. E que foi sucessivamente alvo de edições em tradução portuguesa desde então (a wook sinaliza cerca de 19 peças).
Entendi, deixar esta nota para que os leitores possam respirar um pouco de ar puro, coisa rara agora que a caça aos galambuzinos começou
E já que falei de Itaca, o poema que a Zé me mandou, porque não relembrar um livro editado por uma perdida editora coimbrã de que fui sócio (Centelha): “Um barco para Ítaca” de Manuel Alegre meu velho, velhíssimo, amigo . A Centelha de resto editou, nos tempos difíceis, a “Praça da Cançao”, “Letras” e “O Canto e as armas” tudo às escondidas, numa corrida contra a pide e a bufaria e se alguma coisa deixou de bom foi a sua excelente colecção de poesia mais de trinta volumes que raramente se encontram em alfarrabistas.
Do Durrell também por aqui anda cerca de dúzia e meia de títulos que quando se é um leitor entusiasta é-se fiel. Aliás, também por aqui estão três obras de um irmão, Gerald, naturalista, cavalheiro de excelente humor, escrita afiada que vale a pena e a quem se deve a autoria literária de uma série televisiva, “Os Durrell” que é a todos os títulos, magnífica e impagável.
Leitores, vão por mim, os Durrell como o Cavafis (ou Kavafis) valem a pena e merecem ser lidos. Como de resto todos os autores que aqui foram citados e que, ainda hoje, são alvo de reedições. Umberto Eco citava os Dumas e os Verne, e o Savater só dizia bem, e muito, do Salgari. Estou bem acompanhado e vacinado contra a peste negra que grassa pela política nacional.
Vai esta para a Zé, que conheci moçoila de “bom ver e melhor apalpar” (cito Cela, Camilo José...), lá pelos finais de 60, acompanhada por dois monstros teatrais (o Luís Miguel Cintra e o Jorge silva Melo) que revolucionaram (ou tentaram revolucionar) o teatro português. Deus guarde o primeiro por cá e receba bem o segundo já desaparecido da mundanal cena. Às vezes sinto-me demasiadamente privilegiado. Será que o mereci?
* E não percam “Mythos” de José Pedro Serra, RTP 2, aos domingos, cerca das 23 horas. Um regalo!