o leitor (im)penitente 271
Salgueiro Maia veio de Santarém para Lisboa. Sozinho?
mcr, 10-9-24
Permitam os/as leitores/as que eu cite aqui Brecht, melhor dizendo as "Perguntas de um operário leitor ("...César conquistou as Gálias. Não teria pelo menos um cozinheiro?..)
em boa verdade, o título é um chamariz (também, de facto, é para isso ue os títulos servem) e o capitão de Santarém, herói absoluto masi vezes citado do que respeitado, serve apenas para chamar a atenção neste cinquentenário de Abril para algo que por tanto se falar em "capitães de Abril" se esquecem todos quantos arriscaram muito ao acompanhá-los.
No caso concreto quero apenas citar os jovens oficiais milicianos , e terão sido largas centenas, que desde o primeiro dia, muitas vezes bastante tempo antes, estiveram na génese ou no apoio entusiástico ao golpe militar.
Poderia referir ainda outras centenas de portuguesas e portugueses que, fora dos quarteis arriscavam diariamente a vida ou pelo menos a liberdade num combate sem tréguas ao Estafo Novo.
Todavia, desta feita, e repetindo vários antigos folhetins aqui publicados sobre o papel de um largo número de combatentes nas guerras africanas, quero uma vez mais destacar o papel dos oficiais milicianos e sobretudo dos que nos anos posteriores a 70 foram chamados a combater nas frentes de guerra.
Desta vez, isto vem a propósito de um livro ("Guiné os oficiais milicianos e o 25 de Abril" Ancora ed, 2024 , da autoria de Alvaro Marques, amaro Jorge, Canhoto Antunes, Celso Cruzeiro, Eduardo Maia costa, João Ferreira do amaral, João Teixeira, José Manuel Barrosos, José Manuel Correia Pinto, José Pratas e Sousa, Luís Araújo e Rui Pedro silva)
Deste grupo, seis são meus migs e contemporâneos de Coimbra que se fizeram ou ajudaram a fazer a crise de 69. Só por isso sinto umaespecial alegria o escrever os seus nomes, como aliás comovidamente relembro (porque brevemente citados no mesmo livro) mais três que com eles estavm no mesmo barco mas que já cá não estão: José Barros Moura, Luciano Avelãs Nunes e joel Hasse Ferreira (este só o conheci mais tarde noutras andanças ).
Este livro cuja leitura é, além de imperiosa, agradável e bastante curiosa, refere apenas como é que umas largas dezenas de milicianos destacados na Guiné conseguiram não só entrosar-se no MFA como ainda por cim, graças àsua capacidade e experiência políticas, ganha nas batalhas estudantis, fazer pender a trajectória do MFA guineu para um rápido acordo cm as gentes do PAIGC.
Não estou, de modo algum, a diminuir a coragem, o pensamento, a vontade dos oficiais do quadro aderentes e fundadores do Movimento mas apenas a realçar um facto que, cada vez mais se torna desconhecido:o 25 de Abril e boa parte do seu programa final teve também, a mão de centenas de milicianos. Direi mais: sem esse apoio nem lá (na Guiné) nem cá em todos os quartéis de onde partiram tropas, o 25 de Abril não teria sucedido. Tão simples quanto isso .
A minha tropa, por razões que não vem ao caso, foi mais feita nas prisões espaçadas e noutras actividades conspirativas que incluiram um pequeno apoio que não foi necessário accionar ao dia 25. Todavia, mesmo nesses dias anteriores posteriores outros amigoa, colegas e companheiros desde Coimbra estiveram na linha da frente, a começar pela ocupação da PIDE portuense e nas movimentações ocorridas nos quartéis da cidade.
Este livro que, como um dos autores afirma, não pretende fazer o retrato de pessoas que eventualmente se poriam em bicos de pés, a reclamar a sua parte de gloria militar, vale pelo contributo franco, desempoeirado com que se descreve um processo exemplar (o da Guiné) e como sem mesmo eles contarem isso teve consequências nas outra partes de África onde, igualmente, outas centenas de milicianos cpnseguiram ,de certa maneira apor a sua pequena contribuição "revolucionária" (eu prefiro dizer, "cidadã, civilizada, humana) a um processo que não foi fácil mesmo se (e ao contrário do que parece transparecer em alguns depoimentos) as teses ditas spinolistas (e "neo-coloniais") já não tivessem, realmente, pernas para andar. Faço parte dos que pensam que Spinola e um par de dirigentes políticos que pensaram uma outra solução para as guerras africanas chegaram já demasiado tarde. tivessem eles podido oferecer essa alternativa nos princípios de 60 e talvez as coisas puderiam ter sido ligeiramente diferentes. Porém, tenho como certo que a teoria do "tamanho do nariz de Cleópatra" é apenas uma vaga teoria sem possibilidades de se poder comprovar. A ideia de uma federação luso africana nunca passou de uma ligeira conversa de amigos sem substância nem defensores que pudessem modificar a política do Estado Novo.
A História é o que é, os factos tem muita forç e Spínola mesmo eleito Presidente da República já não tinha mão no MFA e menos ainda nos partidos políticos. Isto sem falar na "rua" onde a única exigência ouvida éra o regresso imediato da tropa, dos pais, dos filhos, dos maridos e dos irmãos que, corriam naturalmente o risco de perecer por uma causa que já não tinha defensores suficiente para não falar de aliados.
(a este propósito não resisto a lembrar, outra vez mais, que logo nos primeiros dias de democracia e liberdade, houve uma greve (dos CTT se bem me lembro= para a qual foram despachados dois outros amigos meus, milicianos, também de Coimbra. Recusaram-se a "matar" a greve e foram obviamente presos. Chamavam-se eles Anjos e Marvõ , vinham da crise de 69 e o país cobriu-se de inscrições ((Anjos Marvão / Libertação))
É verdade que há um par de livros que cobrem não só uma parte da Resistência ao Regime do Estado Novo mas que referem actos, gestos, situações que, de certo modo foram, também eles, parte do ar subversivo que, apesar de tudo animava o pequeno contingente da Oposição que sempre existiu, resistiu e padeceu. Porém, na escassa e cada vez mais distante memória colectiva, no encanitado debate político que, à boleia de Abril (sem culpa deste) se tem levado a cabo, perpassa finalmente um desconhecimento da realidade portuguesa, dos anos de chumbo e fica apenas a ideia altamente redutora que duas centenas de oficiais do quadro entenderam a certa altura correr com um Governo que já era m cadáver à espera de certidão de óbito.
Como dizia o sr marquês de Pombal, "um homem mesmp morto necessita de quatro para o tirarem de casa"
Um Governo mesmo naagonia precisou de quatro tiros na parede do quartel do Carmo para perceber que já não existia.
E é bom lembrar que mesmo antes desses qatro tiros o pequeno mas heróico destacamento de Salgueiro Maia estava já acompanhado de uma enorme multidão de paisanos que (suponho) sabiam quese as coisas dessem para o torto deixariam ali umas largas dezenas de mortos e feridos.
Também esses meus amigos, na Guiné, no Porto e em toda a a parte sabiam que arriscavam muito . Mas não titubearam. Ninguém conhece os seus nomes mas na hora da verdade é bom que alguém recorde que eles estiveram onde foi preciso
Um forte, comovido e imenso abraço velhos companheiros de há cinco seis décadas. Estamos vivos!