o leitor (im)penitente 260

Nuno Canavez, outra vez?
-Sempre!
mcr, 11-10-23
Isto, hoje, é muito pessoal, muito à moda do Porto, muito para leitores, bibliófilos & outras esºpécies em vias de desaparecimento e, sempre, sempre para um amigo mais transmontano que a alheira de Mirandela e, aliás, da mesmíssima terra.
Comecemos por um rapazola que estiolava no antigo colégio Almeida Garrett onde, depois de uma longa doença pulmonar frequentava as aulas de latim e alemão do sétimo ano.
Interno, claro, com o mesmo número do pai que também por ali andara. m colégio interno e o AG era carinhosamente chamado pelos seus prisioneiros "a tasca", eu fazia o possível por me evidir daquele prédio enorme, dos seus terrenos de recreio, juntando-me a um escolhido grupo de outros pré-irrredutíveis que, noite alta, se escapuliam do dormitório dos grandes, por um janela e sigilosa e imprudentemente alcançavam a sala do piano, com uma janela apenas encostad, desciam escadas precipitavam-se no pátio e , numa correria desenfreada, alcançavam os muros de uma taberna acolhedora que, por um copo de vinho barato lhes facilitava saída e entrada mais tardia. Depois, errávamos nas ruas do Porto, sem motivo apenas movidos pela ânsia da liberdade, pelos nossos dezasseis/ /dezassete anos.
Essa evasão quase diária terminou num dia em que de mafrugada cairam uns flocos de neve. Imprudentemente, um dos evadidos anunciou que nevara e daí até à descoberta da verdade foi um passo que os senhores "Cavalo", "Cuecas" e "Pardal sem rabo", directores do estabelecimento rapidamente e com êxito, deram.
Eu, pouco apreciava aquelas sortidas, detestava o verdasco que pagava como portagem, mas nunca falhei tais saídas. Ia nisso o meu prestígio e assim me perdoavam ser bom aluno.
Entretanto, misericordiosamente, descobri a Juventude Musical (lembremos com admiração e carinho, Ofélia Diogo Costa e, já agora, as duas filhas que, como ela foram exemplares animadoras culturais no campo da música e no Porto...) que realizava sois ou três concertos no Cinema Trindade, pela tarde.
Apesar de desafinar logo entre o Do e o Ré, sou um forte amador de música pelo que não fiz qualquer sacrifício quando me inscrevi e, com autorização dos senhores directores do colégio, lá me aperaltava nos benditos dias de concerto e marchava para o Trindade.
Pelo caminho, parava sempre para ver ad mondtra da Livraria Académica onde oficiava um jovem poucos anos mais velho do que eu que dazia as vezes de empregado da loja.
Acho que, por essa altura, nunca lá entrei, ao invés da paragem seguinte, a livraria divulgação, depois Leitura de ouro mítico livreiro, Fernando Fernandes. Comprei aí, com a minha pequena semanada os dois primeiros livros* da minha biblioteca, ambos de poesia, ambos de autores que, hoje, pouco ou nada dizem à generalidade das pessoas mas que eu estimo não tanto pela qualidade literária mas apenas porque marcam o início "pagante" deste meu amor impossível pela leitura (o segundo melhor vício solitário duma criatura, o terceiro será a escrita, também ela outro amor que me foge e desdenha sem apelo nem agravo).
Os anos de Coimbra não me permitiram, nem eu queria voltar ao Porto pois fizera o voto fe nunca viver a norte do leitão da Bairrada. Todavia, o homem põe e Deus dispõe e nos alvores dos anos 70 já caé estava, advogando, conspirando, lendo e comprando livros.
E regressei à Académica , desta feita entrando lá dento e começando, de facto, uma amizade com este ruidoso e refilão transmontano que trata os livros por tu, os conhece, os divulga, os ama (e vende...).
Perdi a conta do que lá comprei durante estes cinquenta e tal anos. Porém, entre tantas recordo duas compras exemplares.
A primeira, nem compra foi uma mais que generosa oferta. De facto, em finais de 40, princípios de 50, o meu avô Alcino ofereceu-me a "colecção Pátria", um conjunto de fascículos (43) sobre as glórias nacionais. Foi o meu primeiro contacto com a História e era fruto, se bem recordo da época dos centenários. E veio exactamente atempo pois eu estava na 3ª classe altura em que se começava a aprender uns rudimentos de História de Portugal. Não estou a dizer que aqueles caderninhos fossem exactamente la crème de la crème da historiografia nacional mas, pelo menos para mim, foram o motor do meu entusiasmo pela História.
Ora, numa expedição ao Almarjão encontrei trinta e muitos dos fascículos, a preço mais que acessível e comprei-os, esperando que, com o tempo, completaria a colecção. Isso demorou apenas um par de dias pois logo que regressei ao Porto, resolvi ir à Académica saber se por lá haveria algum dos fascículos 5 ou 6) em falta. O sr Nuno Canavez nem hesitou. encafuou-se numa das salas do primeiro andar e regressou com todos, mas todos, os números em falta. Quando quis pagar, ofereceu-mos afirmando que eu era um bom freguês que merecia ser mimado.
A minha outra compra milagrosa deu-se num dia em que avistei encostados a uma estante os dois volumes do "Tableau de Paris" de Edmond Texier (não confundir com a obra homónima e mais famosa de Mercier e anterior a à citada em cerca de 50 anos) . Esta edição é sumptuosa, desde a magnifica encadernação até às 1500 (!!!) gravuras que ilustram as cerca de 800 folhas douradas à cabeça.
atrevi-me a perguntar o preço e a resposta foi rápida. "Cem euros mas para o sr dr fica por noventa." Surpreendido pela barateza, nem hesitei .Em dois minutos levantei o dinheiro na cixa multibanco mais próxima e desandei para a minha esplanada habitual para ver melhor o que comprara. Ao fim de pouco mais de meia hora já não sabia se Buno Canavez estava no seu perfeito juízo ou se, mais simplesmente, não percebera de que livro se tratava. Ali mesmo, com a ajuda do computador fui pelo livro e os cinco resultados encontrados iam de 499 a 1500 euros, numa média final de 800! O estado dos volumes era impecável pelo que provavelmente caberia mais na zona dos 1500 do que nas restantes.
Dias depois, resolvi ir á livraria para informar o livreiro do que descobrira mesmo que isso me custasse pagar mais. Canavez ouviu os meus números e respondeu assim.
"Sr dr. os livros descritos estavam à venda ou vendidos?" - "à venda". respondi.
Ah, não estavam vendidos. Ainda por cima são volumes enormes (38x28x4 cm) não cabem nas estantes e estão escritos em francês, língua que já ninguém, por cá lê. Levou-os e muito bem pois o preço goi mais fo que adequado. Aqui, não passavam de "monos" e em sua casa vai ser um regalo!"
Mesmo dando como certos os argumentos, a verdade é que nunca conheci outro livreiro capaz de tal modéstia no preçário. Durante todos estes anos, nunca me pude queixar do livreiro que, ainda por cima, por várias vezes me guiou compras e leituras . Devo-lhe, por exemplo, as "Mémoires de Jacques Casanova de Seingaly..." ricamente encadernado em 8 volumes, com xilogravuras de Maillart, num estado de novo ou alguns dos dez volumes dos "álbuns descritivos e fotográficos da colónia de Moçambique", de J Santos Rufino (1929) bem como volumes dispersos da "Expedição portuguesa ao Muatianvua" de Henrique de Carvalho.
(estes dois últimos casos demonstram quanta paciência e demorada pesquisa de anos podem ser necessários para completar obras quase sempre desaparecidas ou esgotadas. )
Razão tinha Mário Soares que em todas as deslocações ao Portoreservava sempre várias horas para se encafuar no 1ºandar da "Livraia Académica" de onde saía carregado de livros e, como diz, Canavez, com a carteira substancialmente "aliviada".
Numa vida com mais de 60 anos a "bater livrarias por toda a parte, conheci outros bons e muito bons livreiros. Canavez não é o único mas faz parte de um "lote" a quem a cultura muito deve. Sem eles, e são cada vez menos, este mundo dos leitores empedernidos (e o dos bibliófilos viciosos...) seria muito menos interessante.
Hoje, homenageiam-no, uma vez mais, no Porto. Espero que as autoridades municipais ou nacionais não se esqueçam deste velho senhor que anda nisto há setenta e cinco anos.
* "Mora alguém na outra margem", Carlos Gabriel e "Sete poemas para Egéria e notícia para mim" de Hélder Grilo Gonçalves
** "Tableau de Paris" Edmond Texier, ed Paulin et L Chevalier, Paris 1853
*** Colecção Pátria", SPN, 1936-45, 43 fascículos
Colecção Grandes Portugueses , SPN 1945/51, 17 fasxículos
Colecção "gGrandes Portuguesas", SNI, 1949-51, 4 fascículos
na gravura: o mítico 1º andar só para madores da livraria Académica.